A ESTRANHA MORTE DE FREDERICO BARBAROSSA
- História Medieval

- 9 de jul.
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Em 10 de junho de 1190, em plena campanha da Terceira Cruzada, um dos homens mais poderosos e respeitados da cristandade medieval encontrou um fim tão súbito quanto misterioso. Frederico I, conhecido como Barbarossa, imperador do Sacro Império Romano-Germânico, morreu enquanto atravessava o rio Saleph (atual Göksu, na Turquia), deixando seu imponente exército germânico à deriva e marcando para sempre a história das Cruzadas com um episódio envolto em dúvidas, lendas e interpretações.
A morte de Frederico não foi apenas a perda física de um imperador em campanha: foi um choque simbólico para os cruzados e um duro golpe moral para o cristianismo ocidental. Por séculos, cronistas e estudiosos se perguntaram como um soberano tão experimentado, respeitado e reverenciado pôde perecer de maneira tão banal e inesperada. Teria sido realmente um afogamento acidental? Uma consequência da idade e do esforço físico? Um sinal de desígnio divino? Ou, como muitos preferiram acreditar, o início de um mito que continuaria ecoando na memória coletiva germânica como o imperador adormecido que um dia retornará?
Este artigo propõe-se a revisitar, com base em fontes medievais e modernas, os detalhes daquela fatídica jornada pela Anatólia, as circunstâncias exatas de sua morte, as diferentes versões do ocorrido, as consequências para a Terceira Cruzada e o impacto simbólico que Frederico Barbarossa exerceu mesmo após sua morte. Entre a história e a lenda, a figura do imperador permanece como um dos personagens mais fascinantes da Idade Média.
O contexto histórico: a Terceira Cruzada
A Terceira Cruzada (1189–1192) foi convocada pelo Papa Gregório VIII em resposta à dramática queda de Jerusalém para as forças muçulmanas lideradas por Saladino em 1187. A vitória muçulmana na Batalha de Hattin e a perda do Santo Sepulcro foram vistas como uma catástrofe para a cristandade ocidental, gerando uma mobilização sem precedentes entre os monarcas europeus.
Frederico Barbarossa, já com quase 70 anos, decidiu participar da cruzada não apenas como ato de devoção religiosa, mas também como uma demonstração de poder imperial e uma tentativa de reafirmar sua posição como defensor máximo da cristandade. Sua decisão causou grande comoção, pois poucos imaginavam que o velho imperador se arriscaria em uma jornada tão árdua.
Ao lado dele partiram também Ricardo I da Inglaterra, conhecido como Coração de Leão, e Filipe II Augusto, da França. Os três reis cruzados formavam uma aliança delicada, marcada por desconfianças e ambições próprias, mas unidos pelo objetivo declarado de retomar Jerusalém.
Frederico foi o primeiro a partir, em maio de 1189, à frente de um dos maiores exércitos já reunidos para uma cruzada: estimado em cerca de 15 mil homens entre cavaleiros, arqueiros, infantaria e pessoal de apoio. Sua rota cruzava a Europa central e os Bálcãs, rumando por terra até Constantinopla e depois atravessando a Anatólia rumo ao Levante.
Os primeiros meses de campanha correram relativamente bem, apesar de choques com tropas bizantinas e emboscadas turcas na Ásia Menor. A travessia pelas montanhas da Cilícia e as temperaturas sufocantes da Anatólia foram extenuantes para homens e animais, mas o exército germânico seguiu avançando com disciplina — até chegar às margens do rio Saleph.
A travessia pela Anatólia e o Rio Saleph
Após mais de um ano de viagem, o exército germânico já se encontrava profundamente desgastado quando chegou à região da Cilícia, no sudeste da Anatólia, em junho de 1190. A jornada pela Ásia Menor havia sido marcada por ataques de turcos seljúcidas, doenças, fome e o calor escaldante das montanhas e planícies da região. O contingente, que partira imponente da Alemanha, estava visivelmente enfraquecido e moralmente abalado.
A travessia do rio Saleph, que corta o interior montanhoso da atual Turquia, deveria ser apenas mais um obstáculo natural a ser vencido. O local escolhido para a travessia era um trecho relativamente estreito do rio, porém com correntezas traiçoeiras. Os cronistas medievais oferecem diferentes versões do que ocorreu naquele dia, mas todos concordam que Frederico Barbarossa morreu subitamente durante a passagem.
Os relatos concordam também que, apesar da idade avançada, o imperador mostrava-se determinado a não perder tempo: insistiu em atravessar o rio à frente de seu exército, provavelmente para dar exemplo e manter a moral dos homens. A correnteza, no entanto, revelou-se mais forte do que aparentava. As armaduras e vestimentas pesadas usadas pelos cavaleiros tornavam qualquer queda na água um risco sério.
As versões da morte de Frederico Barbarossa
Desde os primeiros relatos, a morte do imperador foi cercada por confusão e interpretações contraditórias. Os cronistas cristãos buscaram explicações que iam do mundano ao simbólico, refletindo tanto as limitações da comunicação na época quanto a necessidade de atribuir sentido ao ocorrido.
Afogamento acidental
A versão mais aceita entre os contemporâneos foi que Frederico simplesmente caiu do cavalo e afundou no rio. Carregado pelo peso da armadura e debilitado pela exaustão, não conseguiu lutar contra a correnteza e se afogou rapidamente. Seus companheiros teriam conseguido resgatar o corpo após algum tempo.
Ataque cardíaco
Alguns estudiosos modernos sugerem que o imperador pode ter sofrido um ataque cardíaco ou um derrame enquanto tentava atravessar o rio. Já com 68 anos, desgastado pela campanha e pela travessia das montanhas, Frederico poderia ter perdido a consciência antes mesmo de cair na água.
Punição divina ou martírio
Entre os cronistas mais moralistas, a morte de Frederico foi interpretada como um sinal da ira divina — uma punição por pecados pessoais ou por excessos cometidos pelo exército germânico durante a travessia da Ásia Menor. Para outros, ao contrário, tratava-se de um verdadeiro martírio: um imperador que tombou em nome da fé cristã em solo muçulmano.
O impacto político e simbólico de sua morte
A morte súbita do imperador germânico causou um efeito devastador na Terceira Cruzada. Desmoralizado, o imenso exército alemão se dispersou rapidamente. Parte dos soldados retornou à Europa; outros permaneceram sem comando firme e acabaram perecendo em emboscadas ou de fome e doença.
O corpo de Frederico foi resgatado, mas devido ao calor e à longa distância até a Terra Santa, foi necessário improvisar: seus restos foram fervidos para separar os ossos, que foram levados a Antioquia, enquanto sua carne e órgãos teriam sido enterrados localmente. Essa prática, embora chocante para os padrões modernos, era comum para garantir que restos mortais pudessem ser levados em viagens longas.
Sem o peso militar do exército germânico, a Terceira Cruzada ficou nas mãos de Ricardo Coração de Leão e Filipe Augusto. A missão de retomar Jerusalém fracassou parcialmente: Ricardo conseguiu importantes vitórias, mas não recuperou a cidade santa.
Para a cristandade, a morte de Frederico foi lamentada como a perda de um dos últimos grandes imperadores medievais, um homem que unia a coroa imperial e a espada da cruzada.
Frederico no imaginário medieval e na memória germânica
Embora sua morte tenha representado uma tragédia para a Terceira Cruzada, Frederico Barbarossa não desapareceu da memória coletiva. Pelo contrário, sua figura cresceu nos séculos seguintes, adquirindo contornos quase míticos tanto na tradição cristã medieval quanto na construção da identidade alemã.
O imperador adormecido
Já na Idade Média, surgiram lendas segundo as quais Frederico não havia realmente morrido no rio Saleph. Segundo a mais famosa delas, ele dormia em uma caverna nas montanhas de Kyffhäuser, na Turíngia, sentado a uma mesa de pedra com sua longa barba crescendo e enrolando-se ao redor da mesa. O mito dizia que, um dia, quando a Alemanha precisasse dele novamente, Frederico despertaria para restaurar a glória e a unidade do império.
Essa lenda ecoava uma antiga tradição de reis adormecidos — figuras messiânicas, como o Rei Artur, que retornariam para salvar seu povo em tempos de crise. Para os germânicos, o mito de Kyffhäuser se tornou um símbolo de esperança e identidade nacional, ressurgindo em momentos críticos da história alemã, como as guerras contra Napoleão e a unificação do Reich no século XIX.
Um modelo de rei cristão e guerreiro
Para os cronistas cristãos da Idade Média, Frederico permaneceu como modelo do monarca ideal: devoto, justo, corajoso, defensor da fé. Sua morte trágica durante uma cruzada lhe conferia uma espécie de aura de martírio, como alguém que entregou sua vida pela causa de Cristo.
Em poemas e canções épicas, sua imagem era frequentemente associada à bravura, sabedoria e magnanimidade, contrastando com os reis mais pragmáticos e divididos da época, como Ricardo Coração de Leão e Filipe Augusto.
A apropriação moderna
No século XIX, com o movimento romântico e o nacionalismo alemão em ascensão, Frederico Barbarossa tornou-se um ícone patriótico. O monumento de Kyffhäuser, inaugurado em 1896, celebra essa lenda, mostrando o imperador sentado em vigília eterna, pronto para defender a Alemanha.
Durante o regime nazista, a figura de Frederico foi também usada para fins propagandísticos, como símbolo da “missão histórica” alemã no Oriente, embora desprovida de sua dimensão cristã.
Conclusão
A morte de Frederico Barbarossa permanece como um dos episódios mais emblemáticos e enigmáticos da Idade Média. Em um único instante, no leito de um rio turco, um dos maiores imperadores do Ocidente pereceu de maneira inesperada, abalando o curso da Terceira Cruzada e lançando seu exército ao caos.
Para seus contemporâneos, sua morte foi uma tragédia comovente e, ao mesmo tempo, um lembrete da fragilidade humana mesmo entre os maiores dos homens. Para as gerações seguintes, Frederico tornou-se símbolo de resistência, esperança e unidade — um imperador que dorme, aguardando o momento de retornar.
Entre história e lenda, Frederico Barbarossa continua a inspirar historiadores, poetas e patriotas, lembrado como o imperador cuja vida e morte sintetizaram a glória e as contradições da Idade Média.
Fontes
Freed, John B. Frederick Barbarossa: The Prince and the Myth. Yale University Press, 2016.
Riley-Smith, Jonathan. The Crusades: A History. Bloomsbury, 2014.
Tyerman, Christopher. God’s War: A New History of the Crusades. Harvard University Press, 2006.
Bartlett, Robert. The Making of Europe: Conquest, Colonization and Cultural Change 950–1350. Princeton University Press, 1994.
Chronica regia Coloniensis (Crônica Real de Colônia), século XII.
Annales Herbipolenses (Anais de Würzburg), século XII.



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