A ESTRANHA MORTE DE RICARDO CORAÇÃO DE LEÃO
- História Medieval
- 19 de jul.
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Atualizado: 2 de ago.

Em 6 de abril de 1199, em um castelo de segunda importância no interior da França, um dos reis mais lendários da Idade Média encontrava seu destino. Ricardo I, da dinastia Plantageneta, conhecido como Coração de Leão (Coeur de Lion), morreu não em glória em uma Cruzada ou em um grande campo de batalha, mas atingido por uma flecha disparada por um simples soldado rebelde durante um cerco quase banal.
Para a cristandade e para a história inglesa, a morte de Ricardo foi mais que uma tragédia militar: tornou-se um símbolo das ironias da fortuna medieval, da vaidade real, da fragilidade humana e da imprevisibilidade do destino. O homem que enfrentara exércitos muçulmanos, que derrotara Saladino em Arsuf e conquistara fortalezas na Terra Santa, sucumbira a um único arqueiro escondido nas muralhas de Châlus.
Este artigo explora em profundidade os fatos que cercaram sua morte, o contexto político do reinado, as versões dos cronistas, os impactos para a Inglaterra e a memória duradoura desse rei-guerreiro.
Ricardo I: rei, cruzado e senhor feudal
Ricardo nasceu em 1157, filho de Henrique II Plantageneta e de Leonor da Aquitânia, em Oxford, mas criado sobretudo no sudoeste da França, centro dos vastos domínios continentais dos Plantagenetas. Desde cedo demonstrou talento militar, coragem e carisma. Tornou-se duque da Aquitânia e rebelou-se contra o pai antes de sucedê-lo em 1189 como rei da Inglaterra.
Ricardo passou apenas cerca de seis meses de seu reinado em território inglês. Para ele, a Inglaterra era sobretudo uma fonte de renda para suas guerras e cruzadas. A maior parte de sua energia e atenção foi dedicada a defender os territórios continentais e, sobretudo, à Terceira Cruzada (1189–1192), na qual se destacou como um dos grandes líderes cristãos contra Saladino.
O retorno da Cruzada foi conturbado: capturado pelo duque da Áustria, foi libertado mediante um resgate gigantesco pago por seus súditos ingleses. Nos anos finais de seu reinado, dedicou-se a consolidar sua autoridade sobre os domínios franceses contra Filipe II Augusto, rei da França.
O caminho para Châlus
Ao longo da década de 1190, o controle de Ricardo sobre a Aquitânia e o oeste da França era contestado por barões rebeldes, apoiados de maneira velada por Filipe Augusto. Em 1199, notícias chegaram a Ricardo de que o visconde de Limoges e outros senhores locais haviam encontrado um tesouro enterrado e se recusavam a entregá-lo ao rei.
Movido por ganância, por desejo de reafirmar sua autoridade ou ambos, Ricardo reuniu forças e marchou para o castelo de Châlus-Chabrol, uma pequena fortaleza situada em uma colina. Para um rei que conquistara Acre e derrotara Saladino, o cerco a um castelo provinciano parecia trivial. Mas foi ali que a fortuna o abandonou.
O cerco e a flecha
O cerco começou em março de 1199. As forças reais rapidamente sufocaram a pequena guarnição. Segundo os cronistas, Ricardo pessoalmente inspecionava as defesas, caminhando próximo às muralhas e, imprudentemente, sem armadura completa — apenas com túnica, cota leve e escudo.
Foi então que um defensor rebelde, identificado por alguns como Pierre Basile, teria disparado uma flecha que atingiu Ricardo no ombro ou na parte superior do tórax. Inicialmente, a ferida pareceu leve. O rei, segundo relatos, até elogiou o arqueiro por sua pontaria. O castelo se rendeu no dia seguinte.
A lenta agonia
De volta à sua tenda, Ricardo ordenou que a flecha fosse removida. O cirurgião de campanha a retirou, mas o ferimento infeccionou rapidamente. Gangrena se instalou e, nos dias seguintes, a saúde do rei se deteriorou. Sua mãe, Leonor da Aquitânia, viajou às pressas para estar com o filho nos últimos momentos.
Em um gesto notável, Ricardo teria ordenado que Pierre Basile fosse poupado, dizendo que não o culpava pelo ocorrido. Contudo, após sua morte, oficiais do exército teriam mandado executá-lo — uma contradição que evidencia a confusão moral e política no acampamento real.
Em 6 de abril, Ricardo morreu aos 41 anos. Segundo William of Newburgh, ele recebeu os sacramentos e partiu “como um verdadeiro cavaleiro cristão”.
Interpretações e julgamentos
A morte de Ricardo logo se tornou objeto de interpretação moral e política. Para alguns cronistas, foi um castigo divino: um rei que saqueara igrejas durante a cruzada e oprimira vassalos agora era punido por sua ganância por um tesouro obscuro. Para outros, a morte simbolizava a imprevisibilidade da guerra e a igualdade de todos diante da morte, mesmo um rei guerreiro.
No imaginário medieval, também ficou a mensagem de que a maior ameaça não vem necessariamente do inimigo poderoso, mas do gesto anônimo e imprevisível — uma lição para reis e senhores.
Impacto político: o fim de uma era
A morte de Ricardo representou um duro golpe para os Plantagenetas. Seu irmão João Sem Terra, que assumiu o trono, não herdou nem a habilidade militar nem o prestígio do irmão. Sob João, a coroa inglesa perdeu a maioria de suas possessões continentais para Filipe Augusto.
Entre os barões ingleses e franceses, a morte de Ricardo abriu caminho para um período de revoltas, guerra prolongada com a França e instabilidade. A própria Inglaterra sentiu a ausência de Ricardo, mesmo que ele mal tivesse estado lá durante seu reinado.
Ricardo como mito
Apesar de suas falhas — impostos pesados para financiar suas guerras, desprezo por seus súditos ingleses, brutalidade militar — Ricardo Coração de Leão entrou para a história como símbolo da cavalaria idealizada. Sua coragem nas Cruzadas, sua astúcia militar e sua morte trágica em batalha o transformaram em herói de poemas, romances e crônicas.
Ele foi associado à figura do bom rei aliado de Robin Hood, mesmo que historicamente nunca tenha se envolvido com as lendas do fora-da-lei. Em canções de gesta e na literatura romântica, Ricardo tornou-se exemplo do rei-cruzado, modelo de lealdade à fé e ao ideal cavaleiresco.
A estranha morte de Ricardo I, Coração de Leão, encerra a trajetória de um rei que viveu para a guerra e morreu pela guerra — não em um campo glorioso, mas em um cerco obscuro, atingido por um simples arqueiro.
Ela revela tanto a ironia do destino medieval quanto as limitações da própria cavalaria: um herói incapaz de escapar da vaidade, vítima daquilo que mais prezava. Ao mesmo tempo, imortalizou Ricardo como mito e exemplo para gerações, um dos reis mais famosos da Inglaterra, lembrado por sua coragem, suas vitórias e sua morte lendária.
Fontes
Gillingham, John. Richard I. Yale University Press, 1999.
Tyerman, Christopher. God’s War: A New History of the Crusades. Harvard University Press, 2006.
William Stubbs. The Constitutional History of England. Clarendon Press, 1874.
Roger de Hoveden. Chronica.
William of Newburgh. Historia rerum Anglicarum.
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