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CRIANÇA E ADULTIZAÇÃO NA IDADE MÉDIA: ENTRE A INOCÊNCIA E O PESO DA VIDA ADULTA

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A maneira como cada sociedade enxerga a infância é fruto de construções culturais, econômicas e religiosas específicas. Hoje, o Ocidente tende a considerar a infância como um período protegido, marcado por brincadeiras, aprendizagem gradual e afastamento das responsabilidades adultas. Entretanto, essa visão é relativamente recente.

Na Idade Média (séculos V a XV), a infância era vivida sob parâmetros muito diferentes. Não havia uma distinção tão nítida entre “ser criança” e “ser adulto”. Ao contrário, meninos e meninas eram, desde cedo, preparados para assumir funções produtivas, religiosas ou políticas, de acordo com a posição social da família. Esse fenômeno, que hoje chamaríamos de adultização, não era visto como uma distorção, mas como parte natural do ciclo da vida.


O objetivo deste texto é analisar em profundidade como se dava a infância medieval, explorando as formas pelas quais a sociedade preparava precocemente seus jovens para o mundo adulto. Veremos como essa experiência variava entre nobres e camponeses, quais papéis a religião e a economia desempenhavam, e de que forma a arte e a literatura refletiam essa realidade.


A percepção da infância na Idade Média


A ideia de infância como fase distinta, com identidade e valor próprios, ganhou força apenas a partir do final do século XVII, segundo o historiador Philippe Ariès em História Social da Criança e da Família. No mundo medieval, predominava a percepção de que a criança era um “adulto em miniatura”.


Essa visão se revela na iconografia da época: em iluminuras, vitrais e pinturas, crianças são representadas com feições e proporções adultas, vestindo roupas idênticas às dos mais velhos. As diferenças físicas — como tamanho e fragilidade — não geravam uma concepção simbólica separada.


Contudo, isso não significa que não houvesse afeto ou cuidado. Pais, familiares e padrinhos exerciam papel fundamental na proteção e na inserção social da criança. O que variava era a forma como se compreendia essa proteção: mais ligada à preparação para a vida produtiva e espiritual do que à preservação de um “mundo infantil” isolado.


Educação e formação


A educação medieval não seguia um padrão uniforme. O acesso e o conteúdo dependiam fortemente da origem social.


  • Entre os camponeses, a educação era essencialmente prática. Desde os primeiros anos, as crianças aprendiam observando e imitando adultos: plantar, cuidar de animais, costurar, cozinhar, transportar água. Essa aprendizagem informal tinha um objetivo claro — tornar a criança útil à economia familiar o quanto antes.


  • Na nobreza, a educação incluía leitura, escrita, etiqueta, equitação, manejo de armas (para meninos) e administração doméstica (para meninas). Jovens de famílias aristocráticas eram frequentemente enviados para outras cortes, atuando como pajens ou damas de companhia, tanto para aprender habilidades quanto para fortalecer alianças políticas.


  • No clero, a educação era mais estruturada. Escolas monásticas e catedrais ensinavam leitura do latim, canto litúrgico, aritmética e teologia. Muitas crianças eram entregues aos mosteiros ainda pequenas, especialmente se fossem filhos mais novos que não herdariam propriedades.


Trabalho infantil e responsabilidades


O trabalho infantil era parte intrínseca da vida medieval. Não existia a ideia de que o trabalho precoce fosse nocivo — pelo contrário, ele era visto como treinamento moral e social.


  • Meninos camponeses ajudavam na lavoura, colhiam lenha, cuidavam do gado.


  • Meninas assumiam tarefas domésticas, teciam, cozinhavam, cuidavam de irmãos menores.


  • Em cidades e vilas, aprendizes viviam na casa de mestres artesãos, iniciando o aprendizado ainda antes dos 12 anos.


O vínculo entre mestre e aprendiz era regido por contratos formais, registrados nas guildas (corporações de ofício), e muitas vezes durava anos. Durante esse tempo, a criança trabalhava, aprendia e recebia sustento — mas raramente dinheiro.


O casamento precoce


A idade mínima legal para casar, segundo o direito canônico, era de 12 anos para meninas e 14 para meninos. Isso não significava que todos se casassem tão cedo, mas havia casos frequentes, sobretudo entre famílias nobres, em que alianças matrimoniais eram firmadas ainda na infância.


Entre a nobreza, o casamento era sobretudo um instrumento político e econômico. Muitas vezes, os noivos se conheciam apenas na cerimônia. A consumação podia ser adiada até que atingissem maturidade física, mas o contrato já produzia efeitos políticos imediatos.

No campo e entre artesãos, o casamento ocorria mais tarde, quando havia condições econômicas para sustentar um lar.


Religião e moral


A Igreja exercia influência decisiva sobre a formação das crianças. O batismo, realizado logo após o nascimento, inseria a criança na comunidade cristã.


A moral religiosa via a criança como portadora do pecado original, mas também como símbolo de pureza a ser preservada. Sermões e textos devocionais incentivavam a obediência aos pais, a piedade e o temor a Deus.


Ordens mendicantes e monásticas criavam escolas e abrigos para órfãos. A infância de santos como São Luís de França ou Santa Isabel da Hungria era narrada como exemplo de virtude precoce.


Mortalidade infantil e seu impacto na visão da infância


A mortalidade infantil era alarmante. Doenças, desnutrição e condições insalubres faziam com que muitas crianças não chegassem à adolescência. Estima-se que 30% a 50% morriam antes dos 10 anos.


Essa realidade moldava a relação dos pais com os filhos. Alguns historiadores, como Ariès, argumentam que o apego era menor, como forma de autoproteção emocional. Outros, como Barbara Hanawalt, defendem que o amor parental era intenso, mas expresso de forma diferente, com foco em preparar a criança para sobreviver.


A criança na nobreza


Filhos de nobres eram educados para assumir funções específicas: governar terras, comandar exércitos, casar estrategicamente. Desde cedo, meninos treinavam no uso da espada, na caça e na falcoaria; meninas aprendiam bordado, música e gestão de servos.

Muitas crianças nobres eram enviadas para outras cortes para estreitar alianças e absorver novas habilidades, vivenciando um ambiente político desde muito cedo — uma forma clara de adultização.


A criança no povo


Para as famílias camponesas e urbanas pobres, não havia transição lenta para a vida adulta. O trabalho começava cedo e o lazer era limitado.

Mesmo assim, existiam brincadeiras: jogos de bola, corridas, bonecas de pano, piões. Festas religiosas e feiras também eram ocasiões de diversão. Mas, na maior parte do tempo, o valor da criança era medido por sua contribuição à sobrevivência familiar.


O simbolismo da criança na arte e na literatura medieval


A representação da infância na arte medieval oscilava entre o ideal religioso e a realidade cotidiana.


  • Religioso: O Menino Jesus era representado como uma miniatura de adulto, com vestes régias e gesto solene.


  1. Cotidiano: Iluminuras de livros de horas retratavam crianças ajudando na colheita ou aprendendo ofícios.


Na literatura, crianças surgiam em contos morais e fábulas como personagens exemplares ou como vítimas das durezas da vida.


Comparações com a infância moderna


A principal diferença está no tempo socialmente concedido à infância. Hoje, é comum prolongar a dependência e o cuidado até a adolescência; na Idade Média, a transição podia ocorrer antes dos 10 anos.


A proteção legal da infância, o direito à educação e a proibição do trabalho precoce são conquistas modernas. No entanto, a ideia de que crianças devem aprender responsabilidades cedo ainda persiste em muitos contextos.


Conclusão


A infância medieval foi marcada por uma preparação intensa para a vida adulta. As crianças eram vistas como parte integrante do tecido produtivo e espiritual da comunidade, e não como seres à parte. A adultização era, ao mesmo tempo, uma imposição das circunstâncias e um reflexo da mentalidade de uma época em que sobrevivência e fé eram prioridades.


Compreender essa realidade ajuda a enxergar como valores, expectativas e afetos mudaram ao longo dos séculos — e como, em alguns aspectos, certos debates ainda permanecem atuais.


Fontes


ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família.


HANAWALT, Barbara A. Growing Up in Medieval London.


ORME, Nicholas. Medieval Children.


SHAHAR, Shulamith. Childhood in the Middle Ages.


WIESNER-HANKS, Merry. Women and Gender in Early Modern Europe.


COSS, Peter. The Foundations of Gentry Life: The Multons of Frampton and Their World 1270–1370.

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