Maquiagem na Idade Média
- História Medieval

- 13 de nov.
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Antes de falarmos de pigmentos, cores, receitas e perfumes, é preciso compreender como os homens e mulheres medievais enxergavam o próprio corpo. Nada na Idade Média era apenas estético; tudo estava mergulhado em simbolismo religioso, moralidade cristã, tradições clássicas herdadas de Roma e expectativas sociais profundamente arraigadas. A maquiagem medieval — quando existia, quando era condenada, quando era permitida — fazia parte de um universo cultural onde aparência exterior refletia estado interior, pureza moral e posição social.
A Idade Média, diferentemente da Antiguidade, não celebrava o corpo como ideal de perfeição física. O cristianismo, especialmente a partir dos séculos IV e V, trouxe uma concepção de beleza profundamente espiritualizada: o corpo era transitório; a alma, eterna. Assim, qualquer modificação externa poderia ser vista como ilusão ou engano, principalmente por clérigos rigorosos. Mas a história real é muito mais complexa. A beleza feminina, sobretudo, mantinha papel central em cortejos, casamentos, alianças políticas e literatura cortês. O corpo era simultaneamente condenado e celebrado.
A ambiguidade é evidente nos textos. São Jerônimo critica mulheres que “pintam o rosto para esconder rugas”, enquanto o Trotula de Salerno, o mais famoso tratado médico e cosmético do século XII, ensina detalhadamente como clarear a pele, suavizar manchas, colorir bochechas e lábios e perfumar cabelos. A tensão entre culpa e desejo atravessa todo o período. Mulheres casadas eram incentivadas a manter boa aparência para seus maridos — contanto que não excedessem os limites da modéstia. Jovens nobres, em ambientes cortesãos, buscavam realçar os traços com sutileza. Prostitutas eram proibidas de usar certos pigmentos, mas frequentemente eram as que mais os utilizavam.
O corpo medieval era uma narrativa social. A pele clara apontava nobreza (por associar-se ao trabalho interno, longe do sol), enquanto tons escuros eram associados a camponeses que passavam o dia nos campos. Essa percepção cromática moldaria séculos de cosmética. O desejo por um rosto “branco como leite”, descrito em canções de gesta e romances arturianos, não era apenas questão de beleza; era sinal de status. A maquiagem medieval, portanto, não era puramente estética — era política, social e espiritual.
E havia também o olhar médico. Hildegard de Bingen, em Causae et Curae, fala longamente sobre o equilíbrio dos humores no corpo feminino. Segundo ela, o brilho do rosto refletia harmonia interna; manchas, ressecamento e opacidade eram sinais de desequilíbrio físico e moral. Tratamentos cosméticos — quase sempre misturados a ervas medicinais — buscavam restaurar esta “luz do corpo”, expressão que Hildegard utiliza com frequência. Não era apenas maquiar; era curar.
A literatura medieval reforça esse imaginário. As mulheres descritas nas cortes francesas têm pele clara, bochechas levemente rosadas, cabelos perfumados e sobrancelhas finas. A beleza tornava-se um ideal de virtude social, mas também de sedução. Poetas e cronistas descrevem com detalhes o brilho dos olhos, a suavidade das mãos, o perfume delicado das roupas. A maquiagem medieval vivia nesse espaço estreito: discreta o suficiente para não incorrer em pecado, visível o bastante para comunicar saúde, juventude e refinamento.
No mundo urbano da Baixa Idade Média, a estética feminina ganhou nova força. Cidades como Florença, Paris e Bruges tinham mercados de especiarias, óleos, essências, resinas e pigmentos importados do Oriente. A expansão comercial pós-século XI proporcionou acesso a ingredientes mais sofisticados — muitos deles usados na cosmética bizantina e islâmica, famosa por seus perfumes e ungüentos. A Europa “descobria” o luxo através da rota das especiarias, e junto com ele vinha o fascínio pelos cuidados com o corpo.
Mas se existia desejo, existia também repressão. Pregadores medievais, especialmente entre os dominicanos do século XIII, atacavam a maquiagem como instrumento do Diabo. Para eles, adornar o rosto era “corrigir a obra divina”, pecado comparável ao orgulho. Sermões de Jacques de Vitry condenam mulheres que pintam os cabelos ou as faces, acusando-as de imitar prostitutas. E, no entanto, receitas para clarear a pele circulavam amplamente em manuscritos domésticos. A vida medieval era repleta dessas contradições: o proibido quase sempre convivia com o praticado.
A realidade é que mulheres medievais usavam maquiagem — algumas discretamente, outras com ousadia. O faziam para parecer mais jovens, mais saudáveis, mais nobres. E também porque a beleza, na cultura medieval, tinha função moral: um rosto luminoso indicava a harmonia interior; um rosto descuidado sugeria pecado, doença ou desordem espiritual. A maquiagem tornava-se, portanto, instrumento de comunicação social.
Bizâncio, por exemplo, via a beleza como reflexo da ordem divina. A imperatriz devia brilhar — literalmente — aos olhos do povo, em roupas bordadas e pele clara impecável. No mundo islâmico medieval, perfumes e delineadores não apenas eram aceitos, mas recomendados pelo Profeta Maomé. A henna, o kohl e os óleos aromáticos constituíam parte essencial da higiene e da estética cotidiana.
Essas influências orientais, mesmo filtradas por fronteiras religiosas e culturais, chegavam ao Ocidente de maneira gradual, especialmente após as Cruzadas. A Europa latina conhecia novos aromas, novas receitas, novos ideais de beleza. E a maquiagem medieval ocidental tornou-se, então, um mosaico de tradições romanas, cristãs, árabes e bizantinas.
Assim se formava o cenário em que cosmética e estética floresceriam. A maquiagem medieval não nasceu como frivolidade, mas como prática profundamente integrada ao imaginário espiritual, social e médico do período.Antes de falarmos dos pigmentos, precisamos entender isso: maquiar-se, na Idade Média, era um ato simbólico. Carregava séculos de moralidade, desejo, poder e contradição.
Com esse pano de fundo, podemos entrar agora no coração da questão:como, de fato, se maquiavam mulheres e homens na Idade Média?
A Maquiagem na Europa Medieval (séc. V–XV)
Para compreender a maquiagem medieval ocidental, é preciso antes dissolver a imagem equivocada de um período “sem higiene”, “sem estética” e “sem vaidade”. Essa visão é fruto de mitos modernos, não da documentação medieval. Os registros preservados — especialmente os tratados médicos, os livros de segredos domésticos e as descrições literárias — revelam um mundo profundamente interessado na aparência, ainda que sempre mediado por valores morais e religiosos.
No Ocidente latino, especialmente entre os séculos XI e XV, os cuidados com o rosto tornaram-se parte do cotidiano de mulheres urbanas, nobres e até camponesas com acesso a ervas medicinais. A estética medieval não era extravagante como a renascentista, nem colorida como a do mundo árabe; era sutil. A maquiagem ideal deveria parecer “natural”, discreta, suave — mas ainda assim agir como ferramenta de comunicação social.
A pele era o grande palco da beleza medieval. Nos romances franceses e castelhanos do século XII, a heroína é sempre descrita com pele clara e luminosa, “alva como leite” ou “brilhante como neve”. Essa preferência cromática não era capricho literário, mas reflexo direto de valores sociais: a pele clara indicava nobreza, pois as mulheres da aristocracia viviam protegidas do sol. Já a pele escurecida pelo trabalho agrícola revelava condição camponesa. Não se tratava, portanto, de um racismo moderno, mas de uma diferença de classe profundamente visual. Esse ideal influenciaria toda a cosmética medieval.
O Trotula de Salerno, um dos textos médicos femininos mais importantes da Idade Média, dedica páginas inteiras a receitas destinadas a clarear a pele, suavizar manchas e uniformizar o rosto. É o mais próximo que o período teve de um “manual de beleza”. Em um dos trechos mais famosos do De Ornatu Mulierum, lê-se:
“Para que o rosto da mulher fique branco e puro, pega-se farinha fina, clara de ovo batida e leite de cabra, misturando tudo até formar uma pasta.”
Esse cosmético era aplicado no rosto à noite, funcionando como uma espécie de máscara. Outras receitas incluíam vinagre branco, pétalas de rosa esmagadas, casca de romã e mel. Nunca se mencionam tintas fortes: a estética medieval era baseada no controle das imperfeições, não na criação de cores intensas.
A busca pela “pele perfeita” incluía também a remoção de sardas, manchas escuras e inflamações. Para isso, o Trotula sugere o uso de sementes de fava trituradas, leite de amêndoas e água de cevada. Hildegard de Bingen, em seu Physica, recomenda o uso de urtiga e camomila para “recuperar o brilho do rosto”, conectando beleza a saúde espiritual. Para ela, um rosto luminoso simbolizava ordenação interior.
A maquiagem das bochechas era igualmente discreta. Não existia blush no sentido moderno. A coloração vinha de preparações muito suaves, produzidas com extrato de morango, suco de beterraba diluído em água de rosas ou vinagre aromatizado com flores. As mulheres aplicavam essas tintas com panos macios, apenas para deixar um rubor leve. A ideia era parecer naturalmente corada, jamais construir um tom artificial. Um único tratado espanhol do século XIV menciona o uso de raiz de sândalo moída com gordura animal para colorir as faces, uma prática rara e mais comum em ambientes cortesãos.
Já os lábios recebiam cuidados ainda mais sutis. A tendência medieval privilegiava lábios hidratados e suaves, não altamente pigmentados. Bálsamos feitos com óleo de nogueira, cera de abelha, manteiga clarificada e mel eram os mais comuns. Em alguns manuscritos franceses há referências ao uso de suco de cereja ou framboesa para dar leve tonalidade avermelhada à boca — mas sempre de modo quase imperceptível. Cores fortes eram associadas ao pecado, à luxúria ou ao comportamento sexualmente provocativo, e por isso evitadas entre mulheres respeitáveis.
As sobrancelhas, ao contrário, recebiam atenção particular. Em diversos romances escritos em língua d’oïl, a mulher ideal possui sobrancelhas finas, arqueadas e escuras. A modelagem era feita com pinças primitivas ou linhas de linho embebidas em óleo quente, método doloroso porém eficaz. Para escurecer as sobrancelhas, algumas receitas mencionam fuligem de lamparina misturada a óleo de oliveira. Bizâncio e o mundo islâmico preferiam delineadores mais marcados, mas no Ocidente o objetivo era apenas reforçar os pelos naturais, não redesenhar a linha.
Os cabelos também participavam deste universo cosmético. Clarear os fios era comum entre mulheres nobres, que desejavam tons loiros, associados à juventude e à pureza desde a Antiguidade. Uma receita italiana do século XIII recomenda lavar os cabelos com infusão de casca de nogueira e, em seguida, deixá-los secar ao sol para atingir tons dourados. Outras utilizavam açafrão, camomila e limão. Já o perfume dos cabelos vinha de óleos de lavanda, alecrim ou arruda — hábito que se intensificou no fim da Idade Média conforme as cidades cresciam e tornavam-se mais densas.
A maquiagem, diferentemente do que se imagina, não era exclusividade feminina. Homens também utilizavam ingredientes cosméticos, especialmente para tratar cabelos, suavizar a pele ou perfumar o corpo. Manuscritos ingleses do século XIV mencionam monges aplicando ungüentos de hortelã e mel para evitar ressecamento facial durante o inverno. Cavaleiros de alta nobreza, influenciados pelos códigos de cortesia, frequentemente perfumavam roupas com almíscar e âmbar — considerados aromas nobres.
A influência das culturas árabe e bizantina também deixou marcas profundas na estética ocidental. Desde o século XII, a Península Ibérica — especialmente Al-Andalus — foi fonte de perfumes, pigmentos e técnicas sofisticadas. O kohl, delineador negro usado em todo o mundo islâmico, aparece ocasionalmente na Europa, embora raramente adotado integralmente devido às restrições morais do clero. Perfumes como almíscar, civeta e óleo de rosas chegaram às cortes europeias e se espalharam lentamente.
Bizâncio, por sua vez, ofereceu ao Ocidente não apenas produtos, mas um modelo cultural. A corte constantinopolitana era famosa pela beleza das imperatrizes, que apareciam em público com a pele como marfim, os cabelos perfumados e roupas ornadas de ouro. Crônicas latinas descrevem com fascínio o brilho do rosto de Teodora, não apenas como símbolo de sedução, mas como instrumento político. À imitação bizantina, mulheres nobres ocidentais passaram a refin ar seus próprios hábitos, aproximando-se de uma estética mais elaborada.
É neste ponto que as tensões culturais emergem. Quanto mais as cortes ocidentais se aproximavam da sofisticação bizantina, mais pregadores e moralistas reagiam. Sermões inflamados começaram a associar maquiagem ao pecado, à falsidade e, especialmente, à luxúria. Jacques de Vitry e outros autores do século XIII condenavam mulheres que “pintam o rosto com tons que Deus não lhes deu”. E, ainda assim, as receitas cosméticas circulavam intensamente nos mesmos séculos. A realidade da prática e o ideal moral viviam em constante fricção.
A makeup medieval, portanto, era tanto técnica quanto discurso. Cada gesto — clarear a pele, perfumar os cabelos, afinar as sobrancelhas — comunicava mais do que beleza: comunicava origem social, condição moral, disponibilidade para o casamento, saúde e até espiritualidade. Era também gesto de resistência. Numa sociedade que controlava rigidamente o corpo feminino, a maquiagem oferecia às mulheres um espaço íntimo de decisão: uma forma de cuidar de si, de moldar-se, de insinuar-se.
As cidades da Baixa Idade Média intensificaram esse processo. Florença, Veneza, Paris, Bruges e Londres possuíam mercados repletos de ingredientes vindos do Oriente: mirra, incenso, canela, açafrão, resinas perfumadas e óleos finos. Artesãos especializados produziam sabonetes, águas aromáticas e cremes rudimentares. A estética medieval tornou-se, no século XIV, mais rica e mais acessível para classes sociais mais amplas.
Apesar de todas as críticas, a maquiagem ocidental medieval não desapareceu — refinou-se. Tornou-se mais discreta, mais inteligente, mais simbólica. Era sutileza pura, equilibrando desejo e moral, luxo e prudência, sensualidade e recato.
E assim o Ocidente caminhou rumo aos séculos finais da Idade Média, onde a estética floresceria ainda mais com a crescente influência do Oriente e o renascimento urbano comercial.
Ingredientes, pigmentos e receitas reais da maquiagem medieval
A Idade Média, ao contrário do que muitos imaginam, possuía uma verdadeira ciência de cosmética — parte medicina, parte magia natural, parte herança clássica filtrada pelo mundo islâmico e pelas escolas médicas europeias. A maquiagem medieval não era apenas hábito; era conhecimento. E esse conhecimento atravessava manuscritos, boticas, hortos de mosteiros e livros femininos redigidos no interior das casas. Este universo cosmético se revela com clareza quando observamos os ingredientes usados para transformar rostos, corpos e cabelos.
O elemento mais importante para as mulheres da Europa latina era a base branca, símbolo de pureza e nobreza. A cor branca, além de associada à classe social, possuía forte dimensão espiritual: o rosto claro evocava limpeza da alma. Para atingi-lo, duas grandes tradições coexistiam — a natural e a mineral.
A tradição natural dependia de processos suaves e gradativos. Máscaras de farinha fina, leite de cabra e clara de ovo repousavam sobre o rosto durante a noite e eram lavadas pela manhã com água de rosas. A pele adquiria um leve brilho e textura uniforme, sem alterar profundamente a cor. Algumas receitas, como as preservadas no Trotula, descrevem misturas mais elaboradas, incluindo “seiva de videira jovem” e pétalas de lírio maceradas, aplicadas em camada fina.
Mas havia também o método mineral, muito mais potente — e muito mais perigoso. O ingrediente mais usado foi o alvaiade (carbonato de chumbo), conhecido pelos romanos como cerussa e herdado pela Europa medieval. Sua cor era brilhante, consistente e duradoura, o que o tornava ideal como base branca. Porém, seu efeito colateral era devastador: ressecamento extremo, queimaduras, queda de cabelo e, a longo prazo, envenenamento por chumbo. Mesmo assim, algumas mulheres de alta nobreza continuaram usando-o. Esposas de mercadores ricos em Veneza e Florença aplicavam alvaiade com parcimônia, especialmente em festas e celebrações importantes. Ele era caro, restrito e carregava aura de luxo, apesar dos riscos.
Entre as mulheres comuns, predominava a versão vegetal da base: argila branca finíssima misturada a vinagre diluído. Essa mistura suavizava a pele e criava um leve efeito opaco. Manuscritos ingleses mencionam o uso de farinha de arroz e leite de amêndoas como clareadores delicados, seguros e baratos.
O rubor das bochechas, por sua vez, exigia substâncias capazes de fornecer cor suave, sem parecer artificial. A Idade Média conheceu vários pigmentos naturais destinados a esse fim. Rosas esmagadas com gotas de suco de limão criavam uma tinta rosada clara; flores de malva produziriam uma tonalidade violeta muito leve; morangos eram usados como corante temporário; e o suco de beterraba — quando diluído — servia como rubor discreto. As mulheres aplicavam o pigmento com os dedos ou com pequenos panos de linho. A intenção era apenas imitar a vitalidade natural, não pintar o rosto de forma intensa.
Mas também havia pigmentos mais raros e mais fortes, como o cinábrio (sulfeto de mercúrio), herdado desde a Antiguidade. Sua cor era um vermelho vivo, belíssimo, quase inigualável. Mas seu uso era arriscado tanto pela toxicidade quanto pela condenação moral: tons intensos eram associados à luxúria e ao comportamento sexualmente ousado. Por isso, quando o cinábrio era usado, costumava ser diluído ao máximo. Só cortes mais sofisticadas, como as de Paris ou Viena, ocasionalmente toleravam seu emprego em contextos festivos.
As sobrancelhas, essenciais na estética medieval, eram realçadas com substâncias escuras. A mais comum era a fuligem de lamparina misturada com óleo de oliva. Levava-se a chama de uma lamparina para perto de uma colher, recolhia-se a fuligem e misturava-se ao óleo. Aplicada com um pequeno bastão de madeira, essa mistura escurecia levemente os pelos. Em manuscritos florentinos, há referências ao uso de carvão vegetal finíssimo. O método era simples e barato, e permitia refinar o olhar sem ultrapassar limites morais.
Já os olhos raramente recebiam pigmentos no Ocidente cristão — ao contrário do que acontecia em Bizâncio e no mundo islâmico. O delineado forte, típico do kohl, era visto pelo clero como excessivamente sensual. Mesmo assim, algumas influências orientais penetraram silenciosamente. Manuscritos da Península Ibérica mencionam mulheres usando pó de carvão misturado com manteiga vegetal para sombrear discretamente a região dos olhos. Era uma sombra leve, quase invisível, aplicada com o dedo mínimo. Esse hábito aumentou após as Cruzadas, quando aromas, pigmentos e técnicas árabes chegaram à Europa.
Os lábios, como dito anteriormente, eram tratados com suavidade. O ingrediente mais comum era a cera de abelha, base para bálsamos hidratantes. Misturada a óleos vegetais — especialmente azeite, óleo de amêndoas e óleo de nogueira — produzia pomadas perfumadas com pétalas de rosa. Essa pomada podia receber, ocasionalmente, um toque de cor: suco de cereja, framboesa, romã ou morango. O resultado era um tom rosado quase imperceptível, símbolo de juventude e saúde. Lábios excessivamente vermelhos eram condenados pelo clero, e portanto raros entre as mulheres respeitáveis.
A Idade Média conheceu também uma seleção impressionante de cuidados para cabelos, que funcionavam como parte essencial da estética e da sedução. Os cabelos femininos eram frequentemente perfumados com rosas, lavanda, alecrim, manjerona ou camomila. Receitas italianas ensinavam a clarear cabelos usando uma mistura de caldo de limão, casca de noz e sol forte — método que lembra, de maneira remota, tratamentos capilares modernos. Para fortalecer os fios, recomendavam-se óleos mornos de alecrim ou verbena. Para escurecê-los, casca de romã cozida era aplicada como banho de cor. A cosmética capilar medieval era variada e surpreendentemente eficaz.
Mas talvez o aspecto mais fascinante da maquiagem medieval seja o uso de perfumes e águas aromáticas. O Ocidente herdou dos árabes uma arte refinada do perfume, ainda que adaptada a valores cristãos. O Taccuinum Sanitatis menciona várias receitas de águas perfumadas para lavar o rosto: água de rosas, água de flor de laranjeira, água de violetas e infusões de ervas. Os perfumes eram considerados não apenas agradáveis, mas medicinais. Pensava-se que um aroma suave elevava o humor e equilibrava os humores corporais — especialmente o humor melancólico.
A água de rosas era a mais popular. Produzida a partir da destilação de pétalas, tornou-se símbolo da feminilidade medieval. Era usada para lavar o rosto, refrescar a pele, perfumar roupas e até limpar altares. Sua presença aparece em tratados médicos, textos religiosos e poemas de amor. A rosa era simultaneamente símbolo de beleza, pureza e sensualidade — e por isso dominou o imaginário cosmético.
A higiene, frequentemente desvalorizada na visão moderna, era na verdade parte fundamental da rotina de beleza. Mulheres lavavam o rosto diariamente com água morna e ervas. Bacias de cobre e toalhas de linho eram usadas em rituais matinais de limpeza. O cheiro corporal era amenizado com pós de ervas secas, especialmente lavanda, tomilho e alecrim. As cidades mais ricas tinham banhos públicos — não no estilo romano, mas semelhantes a balneários privados — onde mulheres usavam óleos aromáticos após o banho.
Coleções de “livros de segredos”, produzidos entre os séculos XIV e XV, registram ainda receitas para remover manchas profundas, suavizar rugas e limpar os poros. Uma delas recomenda uma mistura de clara de ovo com suco de limão, aplicada semanalmente. Outra receita, fascinante pelo simbolismo, utiliza farinha de cebola e leite de cabra para “rejuvenescer o brilho da juventude”. Esses textos mostram que a cosmética medieval era muito mais sofisticada e experimental do que se pensa.
Também existiam práticas perigosas, além do alvaiade e do cinábrio. O uso de compostos contendo arsênico — muito raros, mas documentados ocasionalmente — aparece em manuscritos tardios, geralmente como ingrediente para remover manchas escuras. Eram extremamente tóxicos. Porém, seu uso era restrito, caro e, quase sempre, escondido. De modo geral, a cosmética medieval preferia ingredientes vegetais, seguros e acessíveis.
Ao observar esse universo inteiro, percebemos que a maquiagem medieval não era simples enfeite: era um saber complexo. Mulheres transmitiam receitas entre gerações, manuscritos circulavam, boticários experimentavam flores, raízes, resinas e minerais. Havia ciência, tradição, espiritualidade e ousadia nesse mundo de cores discretas, aromas suaves e texturas delicadas.
A maquiagem medieval era espelho: espelho de saúde, de posição social, de moralidade e de sensibilidade estética.
E agora, com os ingredientes desvendados, podemos avançar para um campo ainda mais fascinante: Como Bizâncio e o mundo islâmico influenciaram ou transformaram a cosmética medieval?
Beleza e maquiagem no Oriente medieval
Ao olhar para a cosmética medieval, é impossível compreender plenamente sua riqueza sem voltar os olhos para o Oriente. Foi ali, na interseção entre tradição helenística, ciência árabe-islâmica e espiritualidade cristã oriental, que floresceram algumas das práticas estéticas mais sofisticadas de toda a Idade Média. Bizâncio e o mundo islâmico tinham entendimentos muito mais positivos sobre beleza, perfume e adorno do que o Ocidente latino — e essa diferença moldou séculos de intercâmbio cultural, até alcançar a Europa cristã através das rotas de comércio, das Cruzadas e de Al-Andalus.
A beleza oriental não era vista como suspeita, mas como reflexo de uma ordem divina. Os bizantinos herdaram dos gregos a noção de kallos, a beleza física como expressão da harmonia interior. Não era futilidade; era símbolo de civilização. O mundo islâmico, por sua vez, celebrava o cuidado com o corpo como parte da purificação espiritual. Perfumar-se, higienizar-se, adornar-se eram gestos de respeito à criação, e não atos de soberba. Essa diferença fundamental transformou os cosméticos orientais em objetos de desejo para viajantes europeus, que frequentemente retornavam maravilhados com o luxo das cortes orientais.
O Império Bizantino, herdeiro de Roma e do helenismo, desenvolveu uma estética própria, marcada por esplendor, luminosidade e preciosismo. As imperatrizes eram modelos de refinamento: pele alva, sobrancelhas delineadas, olhos discretamente realçados, cabelo perfumado e brilhante. Há relatos de embaixadores ocidentais descrevendo a beleza radiante das mulheres da corte, sempre associada à luz dourada dos mosaicos e à magnificência do palácio. A imperatriz Teodora, em particular, é exaltada nas fontes como símbolo dessa estética: sua presença, dizem autores do século VI, fazia “parecer que o sol havia entrado no Grande Palácio”.
A maquiagem bizantina não era extravagante, mas calculada. A base branca era valorizada, assim como no Ocidente, mas ali era obtida geralmente por meios menos agressivos do que o alvaiade. Misturas de argilas finas, amêndoas moídas e óleos perfumados compunham as preparações mais populares. Bizâncio possuía boticas especializadas, influenciadas pela medicina grega e pelas práticas egípcias tardias. O uso de pigmentos minerais existia, mas era mais comum entre atrizes e dançarinas do hipódromo, cujas exigências cênicas pediam cores mais pronunciadas.
Os olhos, ao contrário da estética ocidental, recebiam atenção especial. Sobrancelhas escuras e bem definidas eram símbolo de beleza e intelectualidade. Crônicas mencionam que mulheres bizantinas usavam carvão finíssimo ou cinza misturada a óleos para delinear a região dos olhos — hábito herdado tanto da tradição romana quanto do contato antigo com o Egito. Não era ainda o kohl islâmico, mas uma versão mais suave, com a finalidade de intensificar o olhar.
O perfume era elemento onipresente na cultura bizantina. Manuscritos médicos, especialmente os inspirados em Galeno, descrevem água de rosas, água de violetas, bálsamo de Judéia e óleos aromáticos usados para refrescar o rosto, perfumar cabelos e ungir o corpo. As receitas bizantinas eram meticulosas, valorizando a pureza dos ingredientes. A linha entre cosmético e medicinal era fluida: um bálsamo para perfumar também curava; uma água aromática também purificava. Nesse sentido, Bizâncio unia beleza e espiritualidade com uma elegância singular.
No mundo islâmico medieval, a situação era ainda mais elaborada e profundamente enraizada na religião. A tradição islâmica valorizava a higiene como parte essencial da fé. O Profeta Maomé elogiava o uso de perfume e recomendava o kohl como tratamento para os olhos, de modo que o cosmético assumiu função espiritual e clínica. O kohl era feito geralmente de antimônio ou carvão vegetal purificado, aplicado com um pequeno bastão de vidro, osso ou metal. O traço escuro ao redor dos olhos, além de esteticamente marcante, protegia contra a luz forte do deserto e tinha supostas propriedades medicinais.
A maquiagem no mundo islâmico, entretanto, não se limitava aos olhos. A henna era amplamente utilizada para tingir cabelos, barbas, unhas e até as palmas das mãos. Sua cor vermelha-alaranjada tinha significado tanto estético quanto ritual: simbolizava alegria, prosperidade e proteção contra o mau-olhado. No Iêmen, na Pérsia e no Egito, a henna fazia parte de cerimônias nupciais e festivas. Mulheres aplicavam desenhos geométricos e florais nas mãos e nos pés, criando uma arte efêmera celebrada em todo o Oriente.
Perfumes constituíam um capítulo à parte. A ciência árabe da destilação, aperfeiçoada por Avicena (Ibn Sina), revolucionou a produção de fragrâncias. A água de rosas, a essência de jasmim, o óleo de sândalo e a resina de oud (agarwood) tornaram-se produtos de luxo exportados para Bizâncio e, posteriormente, para a Europa. A perfumaria islâmica do século X já era incomparavelmente mais avançada do que qualquer equivalente latino. Enquanto o Ocidente dependia de infusões simples, o mundo árabe produzia destilados puríssimos, com técnicas alquímicas sofisticadas.
Essa tradição refinada se manifestava também na cosmética da pele. Manuscritos médicos árabes detalham receitas para clarear a pele, suavizar rugas, tratar manchas e perfumar o corpo. Ingredientes como sândalo, aloés, âmbar cinzento, almíscar e açafrão eram combinados com méis e óleos vegetais. O ideal de pele variava regionalmente, mas a luminosidade e a suavidade eram universalmente valorizadas. As mulheres muçulmanas usavam máscaras de argila com rosas, enquanto homens aplicavam óleos nos cabelos e perfumes no corpo antes das orações de sexta-feira.
A Península Ibérica — especialmente Al-Andalus — tornou-se o grande ponto de encontro entre as tradições islâmicas e a Europa cristã. Cidades como Córdoba, Sevilha e Granada eram centros de refinamento estético. Poetas andalusinos descrevem mulheres com olhos delineados, cabelos perfumados e pele luminosa. Al-Zahrawi (Abu’l-Qasim), cirurgião e cientista do século X, escreveu em seu Kitab al-Tasrif sobre técnicas avançadas de cosmética e perfumaria, incluindo métodos para fabricar sabonetes refinados e águas aromáticas. Essa literatura médica foi traduzida para o latim a partir do século XII e chegou às escolas de Salerno e Montpellier, influenciando a cosmética europeia.
Al-Andalus introduziu na Europa ingredientes que transformaram a estética ocidental. A água de flor de laranjeira, a destilação de rosas, o sabão duro de origem árabe (al-sabûn), cremes perfumados e óleos aromáticos entraram no cotidiano das elites. Até mesmo a ideia de banhos regulares — tão criticada por moralistas do Norte — manteve-se viva na península ibérica, inspirando práticas que mais tarde se espalhariam para a Itália e regiões mediterrânicas.
O encontro entre Oriente e Ocidente foi, portanto, um dos motores essenciais da cosmética medieval. Bizâncio ofereceu o brilho, o refinamento das peles claras e os perfumes suaves; o mundo islâmico ofereceu ciência, técnica e uma coleção inigualável de ingredientes aromáticos; Al-Andalus serviu como ponte, transmitindo esses saberes à Europa cristã. Graças a isso, a Idade Média não foi um período de pobreza estética, mas de imenso florescimento cosmético, ainda que frequentemente cercado por tensões morais.
Maquiagem, moralidade e espiritualidade na Idade Média
Se existe um tema que revela o coração da cosmética medieval — suas tensões, suas contradições e sua força simbólica — é a relação entre maquiagem e moral cristã. Ao contrário do que muitas interpretações modernas sugerem, a Igreja não condenava uniformemente todos os adornos, nem via toda maquiagem como pecado. O que existia era uma profunda ambivalência, nascida da visão cristã do corpo: simultaneamente templo divino e fonte de tentações. Entre esses dois polos, a estética medieval se desenvolveu, ora celebrada, ora reprimida, ora tolerada, ora temida.
Para entender essa tensão, é necessário lembrar que o cristianismo medieval herdou tanto a herança ascética do deserto — onde a virtude consistia em renunciar ao corpo — quanto a herança clássica de Roma e Bizâncio, onde a beleza tinha valor social, político e cerimonial. Essa herança dupla dá origem ao tom ambíguo dos sermões, concílios e manuais de moralidade. A mesma Igreja que condenava exageros estéticos, ao mesmo tempo incentivava mulheres casadas a manterem boa aparência para preservar a harmonia conjugal. A mesma sociedade que repreendia cores fortes, celebrava a pele clara e luminosa como símbolo de virtude.
No cerne dessa ambiguidade estava o conceito de verdade do corpo. Para muitos moralistas, especialmente entre os séculos XII e XIII, a maquiagem “enganava”, “distorcia” e “desfigurava a criação de Deus”. Thomas de Chobham, em seu Summa Confessorum, afirma que pintar o rosto com tons que não pertencem à natureza equivale a “corrigir a obra do Criador”. Bernardino de Siena, no século XV, condena o uso de tintas que “escondem a idade e fingem juventude”. O pecado, para esses autores, não está no cuidado, mas na falsificação.
Contudo, há nuances importantes: esses mesmos moralistas elogiavam a limpeza, a higiene, o perfume moderado e o cuidado com o corpo dentro dos limites da modéstia. O que se condenava não era a beleza em si, mas a intenção. Pintar-se para seduzir quem não é o marido era pecado; cuidar-se para agradá-lo era virtude. O corpo feminino, nesse sistema simbólico, tornava-se campo de disputa entre disciplina, desejo e espiritualidade.
A literatura de exempla — compilações de histórias morais usadas em sermões — amplia esse cenário. Em obras como o Speculum Laicorum e o Speculum Ecclesiae, encontram-se narrativas sobre mulheres que exageram na pintura e sofrem punições divinas. Uma história popular do século XIII narra que uma mulher que abusava de pigmentos intensos teve seu rosto manchado pela mão de Deus, para que todos vissem a “fealdade da falsidade”. Esse tipo de exemplo não descreve exatamente práticas reais, mas revela as ansiedades espirituais do período: a maquiagem, se usada de forma sedutora, ameaçava a ordem moral.
É significativo que essas condenações quase sempre se dirijam às mulheres e raramente aos homens. Isso não é surpresa. Na sociedade medieval, o corpo feminino era visto como naturalmente ligado ao risco da sedução — não por características biológicas, mas por construções teológicas. As mulheres eram consideradas simultaneamente frágeis e perigosas, dependendo do contexto. Assim, realçar o rosto podia simbolizar disciplina e honra, mas também tentação e engano. A fronteira era tênue.
Entretanto, ao lado dessa vigilância moral, conviviam tradições mais flexíveis. Hildegard de Bingen, por exemplo, não condena o cuidado com o rosto; para ela, a luminosidade da pele é reflexo da saúde espiritual. O Trotula, escrito no ambiente médico de Salerno, nunca menciona pecado — apenas técnicas para clarear, suavizar, perfumar. Em seu mundo, a maquiagem era ciência, não moralidade. Muitas mulheres viviam entre esses dois discursos, negociando diariamente o que podiam ou não fazer com seus rostos.
Outra camada dessa ambiguidade é o papel social da beleza. A Europa medieval acreditava profundamente que a aparência exterior revelava a ordem interior. Uma mulher virtuosa, dizia-se, irradiava pureza; seu semblante era sereno, sua pele luminosa. A fealdade era frequentemente associada a desordem moral — não porque a Igreja ensinasse isso oficialmente, mas porque a mentalidade coletiva assim o interpretava. Escritores como Chrétien de Troyes descrevem heroínas cuja beleza “ilumina o ambiente”, metáfora espiritualizada da estética.
Assim, cuidar do corpo tornava-se forma de comunicar ordem e virtude. A maquiagem discreta contribuía para essa comunicação. Não era apenas estética; era linguagem. E mulheres medievais a utilizavam com habilidade notável, mesmo sob o olhar vigilante da moral cristã.
A prostituição urbana — tolerada, mas vigiada — adiciona uma dimensão importante à relação entre maquiagem e moral. Prostitutas eram frequentemente proibidas por leis municipais de usar certos pigmentos intensos, especialmente cores fortes nos lábios e nas bochechas. Isso não impedia que o fizessem, mas revelava a tentativa de demarcar fronteiras sociais. A cor, no rosto medieval, podia definir identidade moral.
Curiosamente, essa mesma distinção reforçava o uso discreto da maquiagem entre mulheres respeitáveis. Um toque leve de rosa nas faces, uma base suave, um perfume sutil de rosas — tudo isso era considerado apropriado dentro da medida correta. A medida, porém, era sempre negociada.
Na espiritualidade cristã, sobretudo entre os séculos XII e XIV, surgem modelos femininos que influenciam diretamente a estética: Maria, virgens santas e mártires representadas em iluminuras com rostos suaves e claros. Essas imagens exerciam papel formativo. A mulher cristã devia imitá-las, embora sem recorrer a exageros artificiais. A iconografia, portanto, também moldava a cosmética.
Há um ponto central que historiadores como Caroline Walker Bynum ressaltam: o corpo medieval era sacramental. Tinha significado religioso profundo. Mudá-lo em excesso podia ser visto como violação espiritual; cuidá-lo moderadamente, como louvor ao divino. A maquiagem medieval não navegava entre beleza e feiura, mas entre ordem e desordem espiritual. A estética era extensão da teologia.
Na Baixa Idade Média, especialmente após o século XIV, a maquiagem começou a ganhar novos contornos sociais. O florescimento das cidades, o aumento da riqueza mercantil e o contato constante com o Oriente tornaram perfumes, águas florais, pigmentos e ungüentos mais acessíveis. A estética urbana ficou mais rica. Mulheres burguesas, especialmente nas cidades italianas, passaram a adotar rotinas de beleza mais intensas. Isso despertou novas críticas — agora não apenas religiosas, mas econômicas. Pregadores denunciavam o “luxo desnecessário”, argumentando que mulheres de classe média imitavam os hábitos da nobreza. A maquiagem tornava-se, então, questão de classe e de consumo.
Ainda assim, a estética não desapareceu. Pelo contrário, expandiu-se. A presença de espelhos aumentou — não ainda os vidros lapidados renascentistas, mas placas polidas de metal. A imagem do próprio rosto tornou-se mais acessível. A consciência estética cresceu. A maquiagem acompanhou essa expansão, tornando-se mais refinada e mais exigida em ambientes cortesãos.
Na transição para o Renascimento, nos séculos XV e XVI, a cosmética medieval daria lugar a uma estética mais ousada. Veneza, Florença e Ferrara experimentariam tonalidades mais fortes, novos padrões de beleza e uma relação mais positiva com pigmentos artificiais — especialmente com o retorno do uso intenso do alvaiade e do cinábrio entre nobres. Porém, mesmo nesses contextos, a raiz medieval permanecia: a preocupação com o rosto claro, a discreta coloração das faces, o perfume delicado.
Assim, ao fim de mil anos, a maquiagem medieval deixa um legado de ambivalência criativa. Foi reprimida, tolerada, admirada e vigiada. Foi instrumento de virtude e tentação; de distinção social e subversão; de espiritualidade e sedução. As mulheres medievais, mesmo sob regras rígidas, encontraram maneiras de se expressar, de cuidar de si e de participar da construção de sua imagem.
No fim, a maquiagem medieval não é apenas prática estética.
É um testemunho da complexidade humana diante do corpo, da fé e da beleza.
É espelho de uma sociedade que nunca foi simples, nunca foi homogênea e jamais viveu em oposição absoluta entre moral e adorno.
É símbolo da eterna negociação entre quem somos e como queremos ser vistos.
Conclusão
Quando observamos a maquiagem na Idade Média através das lentes corretas — fontes médicas, textos morais, literatura, manuscritos domésticos e crônicas orientais — o quadro que se revela é muito mais sofisticado, humano e complexo do que qualquer estereótipo popular permitiria imaginar. A Idade Média não foi um milênio de negligência estética, nem um mundo onde as pessoas viviam indiferentes ao corpo, à beleza ou ao perfume. Foi, ao contrário, um período em que a aparência era um território carregado de significados sociais, espirituais e culturais.
A maquiagem medieval não era banal nem supérflua. Era linguagem. Por meio dela, mulheres e homens comunicavam saúde, juventude, virtude, status social, espiritualidade e até posição dentro da hierarquia moral da época. Um rosto claro indicava nobreza e recato; as bochechas levemente coradas simbolizavam vitalidade e pureza; os cabelos perfumados expressavam ordem, higiene e até refinamento espiritual; as sobrancelhas cuidadas revelavam disciplina e autocontrole.
A cosmética medieval também não era uma série de improvisos rudimentares. Era baseada em ciência: na medicina dos humores, no conhecimento herbal de mosteiros, na farmacologia árabe e bizantina, na prática artesanal das boticas urbanas e na transmissão doméstica de receitas femininas. O Trotula de Salerno e os tratados árabes de Avicena mostram isso com clareza: a Idade Média produziu saber cosmético sistemático, documentado e rico.
As tensões morais — tão visíveis nos sermões de Jacques de Vitry, Bernardino de Siena e Thomas de Chobham — não eliminam essa realidade, mas a aprofundam. Para muitos teólogos, a maquiagem podia ser instrumento de falsidade. Para muitas mulheres, era instrumento de cuidado, identidade e comunicação. Entre esses dois discursos, formou-se um espaço criativo onde a estética medieval floresceu silenciosamente.
Bizâncio e o mundo islâmico, por sua vez, elevaram a cosmética à categoria de arte. Perfumes destilados, kohl, henna, águas aromáticas e óleos preciosos moldaram uma tradição estética que influenciaria diretamente o Ocidente, especialmente após as Cruzadas. Al-Andalus serviu como ponte privilegiada dessa troca, trazendo para a Europa latina ingredientes, técnicas e concepções de beleza mais luminosas e refinadas.
Ao final da Idade Média, quando as cidades italianas começaram a redescobrir a cultura clássica, a maquiagem se transformou novamente — mas agora apoiando-se num legado milenar. A pele clara medieval se tornaria o “bianco veneziano”; os perfumes árabes influenciariam as casas florentinas; as receitas do Trotula seriam copiadas durante séculos; e a ambiguidade moral continuaria influenciando a relação entre corpo e espiritualidade.
A Idade Média, portanto, não produziu uma estética primitiva, mas uma estética moralizada, espiritualizada, médica, sensorial e profundamente humana.
A maquiagem medieval é testemunho disso: não apenas pigmento sobre a pele, mas símbolo sobre a carne.
É um território onde a beleza encontra a fé, onde o corpo encontra a alma, onde o privado encontra o público.
E, acima de tudo, é um capítulo fascinante da história cultural europeia — um capítulo que revela que, mesmo em tempos de cruzes, coroas e catedrais, a beleza nunca deixou de ser uma forma de linguagem.
Fontes
AVICENA (Ibn Sina). Canon of Medicine. Traduções diversas do árabe para o latim (séculos XII–XIII).
HILDEGARD OF BINGEN. Physica; Causae et Curae. Traduções modernas.
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