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O BRASIL TEM HERANÇA MEDIEVAL?



Quando pensamos na Idade Média, as imagens que surgem em nossa mente geralmente envolvem castelos de pedra, cavaleiros com armaduras reluzentes, monges em mosteiros e reis sentados em tronos. Tudo isso parece muito distante da realidade brasileira, tanto no tempo quanto no espaço. Afinal, o Brasil foi oficialmente “descoberto” em 1500, quando a Idade Média já havia se encerrado na Europa Ocidental com eventos como a Queda de Constantinopla (1453) e o início da Renascença. Mas isso significa que não há herança medieval em nosso país?


Na verdade, há sim — e ela é profunda, embora nem sempre visível aos olhos. Essa herança não se manifesta em construções medievais, mas está presente nas instituições, valores culturais, tradições jurídicas e religiosas que chegaram ao Brasil com os colonizadores portugueses. A seguir, exploramos como a Idade Média sobreviveu através da colonização e moldou, em muitos aspectos, a identidade brasileira.


1. A transmissão da cultura medieval por Portugal


Portugal, como outros países europeus, passou por todo o período medieval. Entre os séculos V e XV, o território português vivenciou o domínio visigodo, a influência islâmica e a Reconquista cristã. Durante esse tempo, desenvolveu-se uma sociedade hierárquica e profundamente cristã, com fortes elementos feudais, valores cavaleirescos e grande influência da Igreja Católica.


Ao iniciar a expansão marítima no século XV, Portugal levava consigo essa bagagem cultural. Quando os portugueses chegaram ao Brasil em 1500, a estrutura social e mental que carregavam ainda era fortemente influenciada pelo mundo medieval — mesmo que já estivessem vivendo os primeiros momentos da Idade Moderna.


A colonização do Brasil, portanto, foi feita por homens que cresceram sob instituições forjadas na Idade Média: o direito canônico, o direito romano-germânico, a estrutura senhorial da terra, a organização da Igreja, a nobreza hereditária e os valores cristãos medievais. Essa herança foi transplantada, com adaptações, para o Novo Mundo.


2. Direito e estrutura fundiária de raízes medievais


Um dos aspectos mais evidentes da herança medieval no Brasil está no direito e na estrutura agrária. Durante a Idade Média, o sistema feudal estabeleceu relações jurídicas baseadas na posse da terra e na fidelidade pessoal. Senhores feudais exerciam poder sobre vastas extensões de terra e sobre os camponeses que ali viviam e trabalhavam.


No Brasil colonial, embora o regime feudal europeu não tenha sido transplantado integralmente, muitos de seus elementos se repetem. O sistema de capitanias hereditárias, instituído por D. João III em 1534, atribuía grandes faixas de terra a nobres e fidalgos — chamados de donatários — com o poder de administrar, cobrar tributos e distribuir sesmarias. Essa lógica remonta ao feudalismo europeu, onde o rei concedia terras em troca de lealdade.


Como observa o historiador Sérgio Buarque de Holanda, “o senhor de engenho brasileiro, sobretudo em suas fases mais antigas, exercia um poder quase absoluto dentro de seu domínio” (Raízes do Brasil, 1936). A centralização da autoridade, o controle sobre os trabalhadores (muitos deles escravizados) e a autonomia em relação ao poder central ecoam o modelo feudal.


3. A Igreja Católica e o imaginário religioso


Outro elo claro entre o Brasil e a Idade Média é a presença marcante da Igreja Católica. Na Europa medieval, a Igreja era mais que uma instituição religiosa — ela era o centro da vida cultural, educacional, moral e até política. O mesmo ocorreu no Brasil colonial.


As primeiras iniciativas de colonização envolveram ordens religiosas, como os jesuítas, franciscanos e beneditinos. Eles foram responsáveis pela catequese dos indígenas, fundaram aldeamentos, construíram igrejas e escolas, e difundiram uma visão de mundo profundamente cristã, baseada nos valores medievais europeus.


A religiosidade popular brasileira também reflete tradições medievais. A festa do Corpus Christi, por exemplo, traz influências da liturgia medieval; as romarias, procissões e a veneração a santos como Santo Antônio e São Sebastião têm origem em práticas desenvolvidas na Idade Média.


Até mesmo a representação do inferno, do diabo e da salvação no imaginário popular brasileiro — muitas vezes transmitida por sermões e autos religiosos — tem raízes em obras como A Divina Comédia de Dante ou nas pregações dos monges medievais.


4. A estrutura social e os valores de honra


A sociedade colonial brasileira foi organizada de maneira hierárquica, com distinções claras entre senhores e servos, brancos e indígenas ou negros, letrados e analfabetos. Essa forma de organização reflete a sociedade de ordens da Idade Média europeia, onde o mundo era dividido em três funções: oratores (os que oram), bellatores (os que guerreiam) e laboratores (os que trabalham).


A ideia de honra, central no mundo cavaleiresco medieval, também influenciou a mentalidade colonial. A importância do nome de família, da linhagem, dos títulos nobiliárquicos e da fidelidade pessoal ao senhor (ou ao rei) perpassa a cultura portuguesa e, consequentemente, chegou ao Brasil.


Essa valorização da honra está presente na literatura do período, como nos autos de Gil Vicente ou nos sermões do Padre Antônio Vieira, e penetrou também na cultura oral brasileira, nos ditos populares e nos hábitos familiares.


5. A língua portuguesa e sua formação medieval


A própria língua portuguesa falada no Brasil é herdeira direta do latim vulgar romanizado durante a Idade Média. Ao longo dos séculos medievais, o latim falado na Península Ibérica foi se transformando, dando origem ao galaico-português e, depois, ao português arcaico.


A sintaxe, o vocabulário e até algumas construções gramaticais que usamos hoje têm raízes medievais. Palavras ligadas ao cotidiano religioso, jurídico ou agrícola — como “missa”, “capela”, “vassalo”, “senhorio”, “foral”, “penhor”, entre muitas outras — foram herdadas desse período.


Além disso, a tradição literária portuguesa medieval, com trovadores, cantigas e crônicas régias, influenciou a formação da literatura brasileira em seus primeiros séculos, especialmente através da escola jesuítica e dos primeiros cronistas do Brasil.


6. Tradições populares com raízes medievais


As festas populares brasileiras também revelam um elo com o mundo medieval. As festas juninas, por exemplo, têm origem nas celebrações dos santos do mês de junho (São João, Santo Antônio, São Pedro), todos venerados desde a Idade Média. A fogueira, a quadrilha, as comidas típicas e os trajes camponeses são adaptações locais de costumes europeus.


Outras expressões culturais, como o auto de Natal, o bumba-meu-boi (com possíveis raízes em folguedos medievais) e a tradição oral do cordel, guardam ecos de práticas cênicas, canções de gesta e narrativas populares que eram comuns nos séculos medievais.


Conclusão


O Brasil nunca viveu uma Idade Média autônoma, como os reinos da Europa. No entanto, a cultura, a religião, as estruturas jurídicas e sociais que nos formaram têm origem medieval. Essa herança, ainda que muitas vezes esquecida ou invisibilizada, moldou os alicerces da sociedade brasileira — especialmente durante o período colonial.


Compreender essa influência é essencial não só para entender o passado, mas também para perceber como muitos dos nossos costumes, crenças e instituições ainda carregam resquícios de um tempo que, embora distante em cronologia, permanece próximo em suas marcas culturais.


Fontes


HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.


LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Estampa, 2000.


CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997.


MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.


VIEIRA, Padre Antônio. Sermões. Diversas edições.


LINHARES, Maria Yedda. História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

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