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PROFESSORES NA IDADE MÉDIA: A LONGA HISTÓRIA DA QUEIXA DOS ALUNOS

Atualizado: 20 de set.


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Ao pensar em escolas medievais, muitos imaginam monges silenciosos, manuscritos iluminados e estudantes obedientes aprendendo latim sob a disciplina de mestres severos. No entanto, uma leitura mais atenta das fontes da época revela uma realidade muito diferente: desde os primeiros séculos da Idade Média, professores se queixavam de seus alunos, e os alunos, por sua vez, criticavam os métodos, as exigências e até mesmo a personalidade de seus mestres.


A tradição da “queixa docente” não é, portanto, uma invenção moderna. Já no século XI, Egbert de Liège lamentava que os jovens não tinham interesse pelo estudo, afirmando que o saber estava em decadência. Em textos escolares como os Colloquies de Ælfric Bata, aparecem diálogos repletos de insultos, que revelam não apenas a indisciplina dos estudantes, mas também a relação tensa entre mestres e discípulos. Cartas e crônicas de universitários do século XIII mostram a outra face: alunos exaustos, reclamando do rigor dos professores e da dureza dos métodos pedagógicos.


Este artigo explora essa história longa e fascinante das tensões entre professores e alunos na Idade Média. Investigaremos quem eram esses mestres, como funcionavam as escolas monásticas, catedrais e universidades, quais eram as queixas mais recorrentes e como elas revelam não apenas problemas escolares, mas também dinâmicas sociais, culturais e religiosas da época.


O cenário da educação medieval


A herança do mundo romano


A educação medieval não surgiu do nada: herdou tradições romanas, em especial o ensino de gramática, retórica e dialética. Mas, com o colapso do Império Romano do Ocidente no século V, esse modelo se transformou radicalmente. O ensino passou a se concentrar nos mosteiros e catedrais, onde monges e clérigos tinham a responsabilidade de transmitir o saber escrito.


Escolas monásticas e catedrais


Nos séculos VI a XI, a maioria dos professores era composta por monges e clérigos que ensinavam a jovens destinados à vida religiosa. O currículo girava em torno do trivium (gramática, retórica e dialética) e do quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia). Os métodos eram baseados na memorização, repetição e disciplina rigorosa.

Já nesse ambiente surgiam tensões. Monges como Alcuíno de York, no século VIII, queixavam-se de que os jovens não mostravam paciência para o estudo das Escrituras e preferiam “coisas fúteis”. Professores reclamavam da preguiça, da dificuldade de concentração e da constante necessidade de impor disciplina.


O nascimento das universidades


A partir do século XII, surgiram as grandes universidades medievais em centros como Bolonha, Paris e Oxford. Essas instituições revolucionaram a vida intelectual, reunindo milhares de estudantes de diferentes regiões. Os professores — mestres em artes, direito, medicina ou teologia — alcançavam prestígio, mas também enfrentavam salas cheias, alunos indisciplinados e greves acadêmicas.


Crônicas da Universidade de Paris, por exemplo, mencionam estudantes que preferiam passar o tempo em tabernas, ou que organizavam tumultos nas ruas, levando os professores a redigir queixas sobre a “geração perdida” que tinham em mãos.


As queixas dos professores: indisciplina, preguiça e desrespeito


Se há um tema recorrente na documentação medieval, é o lamento dos professores em relação aos seus alunos. Seja nos mosteiros, nas escolas catedrais ou nas universidades, as queixas se repetem com impressionante constância: indisciplina, preguiça, falta de interesse pelos estudos e até desrespeito aberto.


Um dos testemunhos mais célebres vem de Egbert de Liège, no século XI. Ele se dizia desiludido com a nova geração, acusando-a de negligenciar os estudos em comparação com a dedicação dos antigos. Egbert afirmava que “o estudo, em todos os lugares, declina como nunca antes”, ecoando uma percepção de decadência intelectual que se repetiria ao longo dos séculos. Esse discurso de que os alunos de hoje não são como os de ontem, curiosamente, atravessa toda a história da educação.


Outro exemplo notável encontra-se nos Colloquies de Ælfric Bata, um monge inglês do século XI. Esses diálogos foram elaborados para treinar os estudantes no latim, mas revelam muito mais do que simples exercícios linguísticos. Neles, vemos professores repreendendo alunos preguiçosos, insultos trocados em sala de aula e queixas sobre a lentidão no aprendizado. O fato de tais textos terem sido preservados mostra que a dificuldade na relação entre mestres e discípulos era não só conhecida, mas também usada como recurso pedagógico — afinal, colocar os próprios alunos para dramatizar cenas de repreensão era uma forma de ensinar pela ironia e pela crítica.


Nas universidades, as queixas ganhavam um novo tom. Mestres em Paris, Oxford ou Bolonha reclamavam de turmas numerosas, da indisciplina dos jovens e da falta de respeito à autoridade acadêmica. Crônicas descrevem estudantes que, em vez de frequentar as aulas, se reuniam em tabernas ou se envolviam em brigas pelas ruas. Os professores, diante desse cenário, viam-se obrigados a redigir estatutos e reforçar a disciplina, recorrendo muitas vezes a punições físicas e humilhações públicas para tentar restaurar a ordem.


Ao mesmo tempo, a queixa docente não se limitava ao comportamento. Havia também críticas ao desempenho intelectual. Muitos professores se lamentavam de que os alunos não compreendiam os textos clássicos, falhavam na memorização das regras gramaticais ou não se empenhavam em exercícios de lógica e retórica. O esforço exigido era grande, e a resistência dos estudantes diante de disciplinas árduas como a escolástica ou o estudo minucioso do latim era constante.


Esses registros mostram que a tensão entre professores e alunos não é um fenômeno moderno, mas uma constante histórica. O contraste entre a expectativa de dedicação total e a realidade de jovens distraídos, rebeldes ou desmotivados já fazia parte da vida escolar medieval.


As queixas dos alunos: disciplina rígida, métodos duros e críticas ao ensino


Se os professores não hesitavam em reclamar da preguiça e indisciplina de seus discípulos, os alunos também tinham muito a dizer sobre os mestres. Embora suas vozes tenham chegado até nós em menor quantidade — já que eram os professores e clérigos os principais responsáveis por escrever e preservar textos —, ainda assim encontramos registros reveladores das insatisfações estudantis na Idade Média.


Um dos maiores motivos de queixa era a rigidez dos métodos de ensino. O aprendizado medieval era baseado em memorização, repetição e disciplina corporal. Estudantes eram obrigados a decorar longas listas de paradigmas gramaticais em latim e trechos inteiros das Escrituras, sendo avaliados não pela compreensão criativa, mas pela fidelidade na repetição. Para muitos jovens, essa forma de educação era extenuante e frustrante.

Além disso, havia a questão da disciplina física. Professores não apenas repreendiam verbalmente, mas também recorriam a castigos corporais. O uso da vara ou de outros instrumentos de punição era prática aceita e considerada pedagógica, sob a justificativa de que a dor corrigia a preguiça e moldava o caráter. Não surpreende que alunos tenham registrado ressentimento contra essa pedagogia do medo.


Nas universidades, as queixas assumiam novos contornos. O custo da vida acadêmica era elevado, e muitos estudantes enfrentavam dificuldades financeiras. Cartas preservadas de universitários em Paris e Bolonha mostram jovens reclamando não apenas das exigências intelectuais, mas também da dureza dos professores, que não aceitavam desculpas e exigiam frequente presença e produção de comentários e debates. A sensação de injustiça era comum: alunos acusavam mestres de favoritismo, de autoritarismo ou de exigir demais sem oferecer o devido suporte.


Um aspecto curioso é que até na literatura da época encontramos ecos dessas queixas. Poemas satíricos do movimento goliardo — estudantes e clérigos itinerantes que viviam às margens do sistema oficial — ridicularizavam professores rígidos e zombavam da vida universitária. Nesses versos, o mestre aparecia como figura distante, mais preocupado com sua autoridade e com pagamentos de taxas do que com o bem-estar dos alunos.

Esses testemunhos revelam que os estudantes medievais já se percebiam como vítimas de uma educação desigual, em que a hierarquia era esmagadora e a margem de contestação, pequena. Suas críticas, por mais veladas que fossem, demonstram que a tensão professor-aluno era uma via de mão dupla: assim como os mestres viam nos discípulos preguiça e rebeldia, os alunos viam nos professores severidade excessiva e métodos pouco compreensivos.


Métodos de ensino e disciplina: entre a pedagogia e a punição


A relação entre professores e alunos na Idade Média era moldada por métodos pedagógicos que hoje podem parecer antiquados ou mesmo brutais, mas que faziam sentido dentro da lógica cultural e religiosa da época. O ensino não era apenas transmissão de conhecimento, mas também formação moral e espiritual, e por isso a disciplina era considerada tão importante quanto o conteúdo.


Memorização e repetição


O coração do método pedagógico medieval estava na memorização. Desde cedo, os alunos aprendiam a repetir fórmulas, paradigmas gramaticais, excertos da Bíblia e trechos de autores clássicos como Cícero e Virgílio. A ênfase não era na criatividade ou interpretação pessoal, mas na capacidade de reproduzir fielmente o conhecimento acumulado.

Os mestres esperavam que o aluno fosse uma espécie de “recipiente do saber” e viam a repetição como caminho para a formação intelectual. Esse método, no entanto, gerava fadiga e queixas, pois exigia horas de esforço mental sem espaço para questionamentos.


O debate escolástico


Com o florescimento das universidades, sobretudo a partir do século XII, a dialética e o debate ganharam destaque. Professores lançavam questões e os alunos deveriam respondê-las em disputas públicas, conhecidas como disputationes. Essa prática formava a retórica e a capacidade argumentativa, mas também aumentava a pressão.

Professores queixavam-se de alunos que não preparavam argumentos à altura, enquanto estudantes reclamavam da severidade dos mestres, que muitas vezes ridicularizavam publicamente os que falhavam.


Punições físicas e disciplina corporal


A disciplina era parte fundamental do processo educativo. Professores recorriam a castigos físicos — como açoites, bofetadas ou golpes de vara — para corrigir comportamentos considerados preguiçosos ou desrespeitosos. Essa prática, longe de ser vista como abuso, era entendida como um recurso legítimo para moldar a conduta.

Para os mestres, aplicar punição era uma forma de ensinar não apenas o conteúdo, mas também a virtude da obediência. Para os alunos, entretanto, essa rigidez gerava medo, ressentimento e, muitas vezes, resistência velada. As queixas contra professores “severos demais” mostram que, embora aceitos socialmente, tais métodos estavam longe de ser bem recebidos por todos.


A figura do professor


O professor medieval não era apenas transmissor de conhecimento, mas também autoridade moral. Sua postura deveria refletir disciplina, sobriedade e piedade. Alunos esperavam dele não só instrução, mas exemplo de vida. Quando um mestre falhava nesse ideal — por ser demasiado ríspido, corrupto ou indiferente —, as críticas se multiplicavam.


As universidades e a escalada das tensões entre mestres e estudantes


O nascimento das universidades


No século XII, surgiram as primeiras universidades na Europa — Bolonha, Paris, Oxford e Salamanca são alguns dos exemplos mais célebres. Diferente das escolas monásticas e catedrais, as universidades eram corporações de mestres e estudantes organizados em torno de um estatuto próprio (universitas), gozando de autonomia e privilégios concedidos por reis e papas.


Esse novo ambiente educativo abriu horizontes para o debate, a produção intelectual e a mobilidade social. Contudo, também se tornou palco de inúmeros conflitos, pois reunia jovens de diversas regiões, temperamentos e interesses, vivendo em cidades agitadas e muitas vezes hostis à presença estudantil.


Queixas contra os mestres


Os estudantes frequentemente se queixavam de seus professores, acusando-os de rigidez excessiva, favoritismo ou de exigir pagamento alto pelas lições. Em Paris, há registros de estudantes que boicotavam as aulas de mestres considerados injustos ou medíocres. Alguns cronistas relatam até episódios de estudantes atirando pedras contra professores impopulares.


Ao mesmo tempo, havia críticas contra mestres que se deixavam corromper por dinheiro, facilitando exames ou vendendo privilégios acadêmicos. Essas práticas alimentavam a desconfiança e o sarcasmo dos alunos, que viam a formação como um espaço de aprendizado, mas também de exploração.


Queixas contra os estudantes


Se os alunos criticavam os professores, os mestres não ficavam atrás. Em diversas cartas e sermões, professores lamentam a indisciplina, a insolência e a falta de seriedade dos estudantes. Muitos viajavam às grandes cidades universitárias mais interessados em tavernas, jogos e romances do que em livros e disputas dialéticas.


Havia também problemas de violência. Em Oxford e Paris, brigavam entre si estudantes de diferentes regiões ou contra a população local. Os chamados nationes (nações acadêmicas) eram grupos que dividiam os alunos por origem geográfica, mas também serviam como facções em disputas políticas e até físicas.


Greves e conflitos urbanos


As tensões chegaram a extremos. Estudantes e mestres organizavam greves acadêmicas quando se sentiam prejudicados por autoridades civis ou eclesiásticas. A mais célebre ocorreu em 1229, em Paris, após a morte de estudantes em confrontos com a guarda real. Em protesto, mestres e alunos suspenderam as aulas por dois anos, obrigando o papa Gregório IX a intervir e garantir novos privilégios à universidade.

Esses episódios mostram que a vida acadêmica medieval não era serena, mas marcada por queixas, protestos e até tumultos. O ambiente intelectual fervilhava de ideias, mas também de tensões sociais, refletindo o impacto crescente das universidades na vida urbana e política da época.


Mestres, Igreja e poder político: uma relação tensa e necessária


O controle da Igreja sobre o ensino


Desde o início, a Igreja Católica exerceu papel fundamental no desenvolvimento do ensino universitário. Bispos, abades e papas garantiam privilégios às universidades, supervisionavam currículos e mantinham a ortodoxia doutrinal. Um mestre só podia lecionar após receber a licença oficial do chanceler da catedral ou do papa — a chamada licentia docendi.


Isso gerava tensões. Mestres que ousavam ensinar doutrinas contrárias ao dogma eram advertidos, suspensos ou até condenados. Casos célebres, como o de Pedro Abelardo (1079-1142), mostram a delicada linha entre o livre debate intelectual e a acusação de heresia.


O poder régio e a autonomia universitária


Se a Igreja controlava a ortodoxia, os reis viam nas universidades uma fonte de prestígio e quadros administrativos. Governantes protegiam mestres e estudantes, concedendo-lhes isenções de impostos e autonomia judicial. Em contrapartida, esperavam lealdade e serviço.


Essa dualidade criava um espaço paradoxal: mestres e alunos gozavam de relativa liberdade para debater filosofia, teologia e direito, mas sempre sob a vigilância da Igreja e dos monarcas. As universidades se tornaram, portanto, locais onde a crítica podia florescer, mas apenas até certo ponto.


Queixas contra a ingerência externa


Muitos estudantes e mestres viam com desconfiança a constante interferência de bispos, chanceleres e oficiais régios. Sermões da época e estatutos universitários registram críticas ao excesso de burocracia, à cobrança de taxas e à tentativa de limitar a liberdade de ensino.


Ao mesmo tempo, havia queixas no sentido contrário: bispos e autoridades civis acusavam estudantes e mestres de abusarem de seus privilégios, cometendo crimes nas cidades e se refugiando na imunidade universitária para escapar das punições.


O caso de Paris em 1277


Um episódio famoso ilustra a tensão: em 1277, o bispo Étienne Tempier de Paris condenou 219 proposições filosóficas ensinadas na universidade, muitas inspiradas em Aristóteles e em comentaristas árabes como Averróis. Essa condenação foi uma tentativa de frear o avanço de ideias consideradas perigosas para a fé cristã.


A decisão gerou enorme descontentamento entre mestres e alunos, que se queixavam de censura e da limitação ao pensamento. Ainda assim, paradoxalmente, a condenação também estimulou novas formas de argumentação e inovação intelectual, já que os filósofos buscaram maneiras criativas de contornar as proibições.


O cotidiano das aulas e as queixas dos alunos


O ambiente escolar medieval


As aulas nas universidades e escolas catedrais medievais eram muito diferentes do que imaginamos hoje. Não havia salas confortáveis, cadeiras individuais ou livros disponíveis para todos. O ensino era essencialmente oral, com mestres lendo e comentando textos em voz alta, enquanto os estudantes copiavam, decoravam e faziam anotações em margens estreitas de pergaminhos.


Muitos alunos reclamavam da monotonia das lições, da dificuldade em acompanhar as leituras e da escassez de exemplares de livros, que precisavam ser copiados manualmente e eram caros. A ausência de bibliotecas acessíveis e de materiais de apoio gerava frustração, especialmente entre os menos ricos.


Queixas sobre métodos e disciplina


As queixas mais recorrentes diziam respeito à rigidez do método de ensino. O modelo escolástico baseava-se em longas disputas (disputationes) e comentários, com pouca abertura para perguntas espontâneas ou criatividade. Muitos estudantes consideravam esse formato repetitivo e pouco útil para a vida prática.


Além disso, os mestres exigiam disciplina severa. Havia multas para faltas injustificadas, punições para conversas durante as aulas e obrigações de frequentar sermões e missas. Estudantes estrangeiros, muitas vezes, se queixavam de discriminação ou de não compreenderem plenamente as aulas, ministradas em latim erudito.


Custos e exploração econômica


Outro ponto constante de insatisfação era o custo dos estudos. Alunos precisavam pagar taxas aos mestres, ao chanceler e à universidade, além das despesas com hospedagem, alimentação e material. Muitos cronistas mencionam estudantes endividados ou obrigados a trabalhar para sustentar seus estudos.


Essa situação gerava sarcasmo e críticas abertas: havia quem acusasse os mestres de “lucrar com a sabedoria” em vez de difundi-la por vocação. Essa percepção alimentava a imagem negativa do professor mercenário, alvo de piadas e sátiras estudantis.


Vida estudantil paralela


Apesar das queixas, a vida estudantil medieval não se limitava às aulas. Muitos jovens participavam de confrarias, tavernas e festividades urbanas. Isso, no entanto, também motivava reclamações dos mestres, que acusavam seus discípulos de negligência e falta de seriedade. Sermões e estatutos de universidades denunciam excessos com bebida, jogos e brigas.


Esse contraste — entre a exigência rígida do aprendizado e o desejo juvenil por diversão — reforça a longa história das tensões entre mestres e alunos, que não diferem muito de certas queixas escolares modernas.


Representações culturais e literárias: professores e alunos na pena dos escritores medievais


A sátira contra mestres e estudantes


A tensão entre mestres e alunos não ficou restrita ao espaço acadêmico. Ela também foi refletida e amplificada em poemas, peças teatrais e crônicas. Muitos textos satíricos medievais zombavam da ganância dos mestres, da preguiça dos alunos e da esterilidade do método escolástico.


Um exemplo notável são os Carmina Burana (século XIII), coletânea de poemas em latim que inclui composições feitas por clerici vagantes (os chamados goliardos). Esses estudantes itinerantes criticavam mestres e bispos com ironia mordaz, celebrando o vinho, o jogo e o amor carnal, em oposição à disciplina rígida e ao peso da ortodoxia.


A imagem do professor na literatura


Na literatura do período, o professor frequentemente aparecia como figura ambígua: respeitado por seu saber, mas também ridicularizado como pedante. Em peças de moralidade ou fábulas, o mestre podia ser retratado como austero, mas incapaz de aplicar seu conhecimento à vida prática. Essa imagem reforçava a percepção de distância entre a teoria acadêmica e o cotidiano dos estudantes.


O estudante como personagem literário


Os estudantes, por sua vez, eram descritos como turbulentos, pobres e insolentes. Nas sátiras urbanas, apareciam como jovens famintos, batendo às portas em busca de comida, ou como bêbados frequentadores de tavernas. Essa representação, apesar de caricatural, ecoa as queixas reais de mestres e cidadãos das cidades universitárias.


As universidades como espaço de conflito cultural


Autores como Dante Alighieri e Boccaccio também registraram em suas obras críticas indiretas à cultura acadêmica. Dante, por exemplo, admirava o saber escolástico, mas em sua Divina Comédia não deixa de colocar teólogos e filósofos em posições de debate e conflito no Inferno e no Paraíso, refletindo a natureza tensa da vida intelectual de sua época.


A longa tradição da “queixa estudantil”


Essas representações literárias ajudam a entender que as queixas dos alunos não eram apenas individuais, mas parte de um fenômeno cultural. O embate entre professores e estudantes, com acusações mútuas de preguiça, arrogância e exploração, formou uma tradição que atravessou a Idade Média e se perpetuou no imaginário cultural europeu.


O legado das tensões: da Idade Média à modernidade


A persistência da queixa estudantil


Se há algo que atravessa séculos sem se alterar substancialmente é a voz crítica dos alunos em relação a seus professores. Desde os manuscritos medievais até as universidades modernas, encontramos ecos da mesma insatisfação: mestres acusados de serem severos, gananciosos ou distantes da realidade, e estudantes descritos como indisciplinados, imaturos ou preguiçosos.


Essa continuidade mostra que, mais do que meras circunstâncias históricas, estamos diante de uma dimensão estrutural da experiência escolar: a educação como espaço de conflito entre autoridade e juventude.


O impacto das tensões na evolução do ensino


As queixas não foram apenas ruído. Elas moldaram transformações reais no ensino. Greves estudantis na Idade Média obrigaram papas e reis a conceder privilégios às universidades. Críticas contra mestres autoritários incentivaram mudanças graduais nos métodos pedagógicos, ainda que lentas. Até hoje, a contestação estudantil é motor de reformas educacionais, mostrando como a insatisfação também gera inovação.


A herança cultural


Do ponto de vista cultural, a longa história da queixa dos alunos criou arquétipos duradouros: o professor severo e pedante, o aluno rebelde e indisciplinado, o ambiente escolar como espaço de disputa. Esses arquétipos se consolidaram na literatura, no teatro, na música e, mais tarde, no cinema, perpetuando a imagem do conflito educativo como um traço universal da vida em sociedade.


Um diálogo necessário


O estudo do passado medieval nos ensina que essas tensões, embora desgastantes, também são criativas. A discordância entre mestres e alunos foi — e continua sendo — um espaço de diálogo, de fricção produtiva. A universidade medieval, com todos os seus excessos e contradições, lançou as bases do ensino superior moderno justamente por permitir, dentro de limites, que as críticas se manifestassem.


Assim, a “longa história da queixa dos alunos” é também a história da construção do saber ocidental, marcada por debates, protestos e resistências que, no fim, sempre enriqueceram o processo educativo.

Fontes


BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.


BOLOGNA, Corrado. Universitas: Storia e immagini di un’idea. Roma: Laterza, 1999.


CHENU, Marie-Dominique. La théologie au douzième siècle. Paris: Vrin, 1957.


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LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 2003.


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RASHDALL, Hastings. The Universities of Europe in the Middle Ages. 3 vols. Oxford: Clarendon Press, 1895.


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VERGER, Jacques. Les universités au Moyen Âge. Paris: Presses Universitaires de France, 1973.

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