A ROMANTIZAÇÃO DE AL-ANDALUS
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A ROMANTIZAÇÃO DE AL-ANDALUS

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Poucos períodos da história medieval europeia exercem tanto fascínio quanto Al-Andalus, o território da Península Ibérica sob domínio muçulmano entre 711 e 1492. Para muitos, evoca imagens de palácios suntuosos, jardins exuberantes, música refinada e uma convivência harmoniosa entre muçulmanos, cristãos e judeus. Essa visão, fortemente enraizada no imaginário moderno, não é apenas fruto de estudos acadêmicos, mas também de representações literárias, artísticas e políticas que se sucederam desde o século XIX até hoje.


A romantização de Al-Andalus nasce da justaposição entre realidade histórica e memória idealizada. De fato, o território andalusí conheceu um florescimento intelectual e artístico impressionante, com figuras como Averróis, Maimônides, Ibn Hazm e a construção de obras-primas arquitetônicas como a Mesquita de Córdoba e a Alhambra de Granada. Mas, ao mesmo tempo, foi palco de guerras incessantes, perseguições religiosas ocasionais, disputas dinásticas e tensões sociais.


Ao longo dos séculos, essa complexa realidade histórica foi reinterpretada: ora como símbolo de convivência multicultural, ora como um paraíso perdido da civilização islâmica, ora como uma Espanha exótica para turistas e escritores europeus, ora ainda como uma bandeira ideológica em discursos políticos contemporâneos.


Neste artigo, investigaremos como se construiu essa romantização de Al-Andalus, distinguindo os elementos históricos reais de suas versões idealizadas, explorando suas origens no romantismo europeu, seu papel na identidade árabe contemporânea e seu uso nos debates políticos atuais.


O Contexto Histórico de Al-Andalus

A conquista muçulmana e a formação do emirado


Em 711, tropas muçulmanas compostas majoritariamente por berberes do norte da África atravessaram o estreito de Gibraltar sob a liderança de Táriq ibn Ziyad, derrotando o rei visigodo Rodrigo na batalha de Guadalete. Em poucas décadas, a maior parte da Península Ibérica foi incorporada ao mundo islâmico. O território passou a ser administrado como uma província do Califado Omíada de Damasco e, mais tarde, após a queda desta dinastia no Oriente, tornou-se um emirado independente de Córdoba (756).


O apogeu do Califado de Córdoba


O século X marcou o auge de Al-Andalus. Sob Abderramão III (912–961) e seu sucessor Al-Hakam II (961–976), o emirado foi elevado a califado, projetando-se como potência política e cultural no Mediterrâneo ocidental. Córdoba tornou-se uma das maiores cidades do mundo, com cerca de meio milhão de habitantes, bibliotecas, banhos públicos e um florescimento científico notável. Foi nesse período que Al-Andalus passou a ser visto como um modelo de esplendor urbano em contraste com grande parte da Europa feudal fragmentada.


Fragmentação e reinos de taifas


Após a guerra civil (fitna) de 1009–1031, o califado colapsou e se fragmentou em diversos reinos de taifas. Esses pequenos Estados, embora rivais entre si, foram centros de cultura e patrocínio artístico. A fragmentação política, contudo, abriu caminho para o avanço cristão no norte da Península, que gradualmente conquistaria territórios até a queda final de Granada em 1492.


Almorávidas, Almóadas e Nasridas


A chegada das dinastias norte-africanas almorávida (século XI) e almóada (século XII) reforçou o islamismo político e militar, mas também trouxe tensões entre a ortodoxia religiosa e a diversidade cultural local. A dinastia nasrida, em Granada (1238–1492), representou o último reduto muçulmano da Península, cuja Alhambra permanece até hoje como símbolo máximo da estética andalusí.


Al-Andalus real: entre esplendor e conflitos


A imagem popular de Al-Andalus como um “paraíso multicultural” frequentemente omite a complexidade de sua realidade. De fato, houve períodos de florescimento intelectual, artístico e científico que deixaram um legado notável para a humanidade. Mas esse esplendor convivia com tensões políticas, desigualdades sociais, guerras constantes e momentos de intolerância religiosa.


Ciência, filosofia e saberes transmitidos


Al-Andalus foi uma das principais pontes entre o mundo clássico e a Europa medieval. Bibliotecas como a de Córdoba chegaram a conter centenas de milhares de volumes — um contraste marcante com boa parte do Ocidente latino, onde os mosteiros preservavam em número bem menor as obras antigas.


Entre os grandes expoentes da filosofia e das ciências em Al-Andalus estão:


  • Averróis (Ibn Rushd, 1126–1198): filósofo e jurista de Córdoba, famoso por seus comentários a Aristóteles, que influenciaram profundamente o pensamento escolástico europeu. Tomás de Aquino, por exemplo, dialogou com suas ideias em diversas obras.

  • Maimônides (Moshé ben Maimon, 1138–1204): filósofo e médico judeu nascido em Córdoba, autor da Guia dos Perplexos, que tentou conciliar razão e fé na tradição judaica. Sua obra exerceu influência tanto no judaísmo quanto no cristianismo medieval.

  • Ibn Hazm (994–1064): polímata cordovês, autor de tratados de teologia, filosofia, direito islâmico e até mesmo de uma obra sobre o amor (O Colar da Pomba).

  • Azarquiel (m. 1100): astrônomo de Toledo, conhecido por aperfeiçoar instrumentos como o astrolábio e influenciar a ciência europeia por meio das traduções latinas.


Além disso, os centros urbanos andalusinos funcionaram como pontos de transmissão do conhecimento grego, persa e árabe para a Europa cristã. Quando Toledo foi conquistada em 1085, por exemplo, sua célebre Escola de Tradutores iniciou um processo de difusão de textos científicos, filosóficos e médicos que alimentaram o renascimento intelectual do século XII.


Arquitetura e arte: a estética do poder


O legado material de Al-Andalus permanece como um dos maiores atrativos turísticos da Espanha contemporânea.


  • Mesquita de Córdoba: iniciada no século VIII e ampliada até o X, é considerada uma das maiores realizações da arquitetura islâmica. Sua floresta de colunas e arcos bicolores sintetiza a fusão de elementos romanos, visigodos e orientais.

  • Medina Azahara: cidade-palácio construída por Abderramão III nos arredores de Córdoba, símbolo do esplendor califal, embora destruída no século XI.

  • Alhambra de Granada: obra-prima da dinastia nasrida (séculos XIII–XV), com seus palácios de estuque, jardins e fontes, que simbolizam o paraíso islâmico.

  • Arte mudéjar: mesmo após a Reconquista, elementos estéticos islâmicos foram incorporados às construções cristãs, criando um estilo híbrido visível em igrejas, palácios e sinagogas.


Esses monumentos materializam tanto a riqueza econômica quanto a sofisticação estética de Al-Andalus.


A convivência religiosa: entre tolerância e limites


Muito se fala da convivencia, o suposto convívio harmonioso entre muçulmanos, cristãos e judeus. A realidade, porém, foi mais ambígua.


Sob o domínio islâmico, os cristãos e judeus eram reconhecidos como “povos do Livro” (ahl al-kitab) e gozavam de certo grau de proteção legal como dhimmi. Isso lhes garantia liberdade de culto, manutenção de seus tribunais internos e cobrança de impostos específicos (jizya). Essa situação representava, em muitos aspectos, mais tolerância do que aquela praticada em grande parte da Europa cristã medieval.


Porém, essa tolerância não era igualdade. Os dhimmi ocupavam posições sociais inferiores, eram proibidos de ostentar símbolos religiosos em público e podiam sofrer restrições no acesso a cargos de poder. Em momentos de crise, perseguições ocorreram. Um exemplo foi o massacre de judeus em Granada em 1066, quando milhares foram mortos após tensões políticas.


Além disso, com a chegada dos almorávidas e, sobretudo, dos almóadas, a ortodoxia islâmica se intensificou, e comunidades cristãs e judaicas sofreram pressões maiores, levando muitos à conversão forçada ou ao exílio.


Conflitos e guerra constante


A romantização de Al-Andalus frequentemente esquece que a península foi palco de quase oito séculos de guerra contínua. Desde os primeiros confrontos com os reinos cristãos do norte até as campanhas finais que culminaram na queda de Granada, o território conheceu invasões, revoltas e batalhas recorrentes.

O mito da convivência pacífica precisa ser equilibrado com essa realidade: Al-Andalus foi tanto um polo de cultura quanto um campo de disputa militar incessante.


A invenção do mito de Al-Andalus na Europa moderna


A romantização de Al-Andalus, tal como é amplamente difundida hoje, não nasceu na Idade Média, mas sim na Europa dos séculos XVIII e XIX, em um contexto intelectual marcado pelo Romantismo e pelo Orientalismo. A Espanha, após séculos de Reconquista e de construção de sua identidade cristã, foi reinterpretada por viajantes estrangeiros como uma “terra exótica” dentro da própria Europa.


O olhar romântico europeu


Durante o século XIX, intelectuais e artistas buscavam no passado imagens idealizadas que contrastassem com a industrialização e a modernidade. A Espanha, com suas ruínas mouriscas e tradições populares, tornou-se um espaço de fascinação. Washington Irving, escritor norte-americano, desempenhou papel fundamental com sua obra Tales of the Alhambra (1832). Ele retratou Granada como um espaço mágico, povoado por lendas, cavaleiros, princesas mouras e jardins encantados.


Esse tipo de narrativa reforçou a visão de que Al-Andalus fora um tempo de beleza e mistério, ignorando deliberadamente suas guerras civis, tensões sociais e desigualdades. A Alhambra, em particular, converteu-se em símbolo universal desse romantismo: não apenas uma ruína, mas um relicário de um passado mítico que o presente deveria preservar.


Orientalismo e exotização


O fascínio por Al-Andalus também deve ser compreendido dentro do movimento mais amplo do Orientalismo, estudado por Edward Said. Para os intelectuais europeus, o “Oriente” representava ao mesmo tempo um espaço de deslumbramento e de diferença radical em relação ao Ocidente. A Espanha islâmica era, nesse sentido, um “Oriente acessível”, um território europeu impregnado de elementos árabes, islâmicos e judeus que parecia oferecer uma ponte entre dois mundos.


Pintores orientalistas franceses como Jean-Léon Gérôme e Eugène Delacroix retrataram cenas inspiradas na arquitetura andalusina, nos trajes mouros e na atmosfera exótica que acreditavam encontrar em Granada, Córdoba ou Sevilha. Esses quadros reforçavam a ideia de uma “Espanha árabe” romântica, sensual e misteriosa.


A literatura espanhola e a redescoberta do legado islâmico


Ao mesmo tempo, intelectuais espanhóis começaram a reinterpretar o legado andalusí de forma positiva, em contraste com a visão oficial que, desde os Reis Católicos, buscava suprimir sua memória. Escritores como Francisco Javier Simonet e Francisco Codera y Zaidín produziram estudos sobre o árabe na Península, enquanto poetas do romantismo espanhol evocavam a nostalgia de Granada.


A historiografia liberal do século XIX também ajudou a criar a imagem de Al-Andalus como uma sociedade culta e refinada em contraste com a suposta “barbárie” da Idade Média cristã. Essa comparação simplista acabou por reforçar o mito de uma convivência perfeita e de uma civilização perdida que deveria ser admirada.


O turismo e a mercantilização do mito


Com a abertura da Espanha ao turismo no final do século XIX e início do XX, a imagem romântica de Al-Andalus foi intensamente explorada. A restauração da Alhambra em Granada e a conservação da Mesquita de Córdoba atraíram visitantes de toda a Europa. Hotéis, guias de viagem e souvenirs passaram a comercializar o “exótico árabe-andaluz”, transformando ruínas em atrações e símbolos em mercadorias culturais.


Esse processo consolidou a romantização de Al-Andalus no imaginário popular ocidental: não mais apenas um tema acadêmico ou literário, mas um produto de consumo cultural global.

Al-Andalus no imaginário árabe contemporâneo


Se no Ocidente Al-Andalus foi romantizado como uma “Espanha exótica” e um espaço de convivência cultural idealizada, no mundo árabe ele se transformou em algo ainda mais profundo: um símbolo de nostalgia coletiva, frequentemente evocado como um paraíso perdido. Essa visão está ligada tanto à memória cultural quanto a discursos políticos modernos.


A nostalgia andalusí


Entre intelectuais e poetas árabes, Al-Andalus representa a glória de um passado em que o Islã floresceu em terras europeias, rivalizando em poder e cultura com qualquer reino cristão. Desde a queda de Granada em 1492, esse sentimento se cristalizou como uma ferida histórica, lembrada em crônicas e poemas.


Na literatura moderna, poetas como Mahmoud Darwish evocaram a Andaluzia como metáfora da perda palestina, associando o fim de Granada ao deslocamento e exílio contemporâneos. Para Darwish, Al-Andalus não é apenas uma geografia histórica, mas um arquétipo daquilo que foi tirado de um povo.


O poeta sírio-libanês Adonis também explorou o tema, apresentando a Andaluzia como espaço de diálogo cultural que poderia inspirar sociedades árabes contemporâneas. Essa visão literária reforça a ideia de Al-Andalus como horizonte de tolerância e criatividade que se opõe às tensões políticas e religiosas atuais.


O mito político de Al-Andalus


No discurso político árabe e islâmico, Al-Andalus aparece frequentemente como símbolo de unidade perdida. Para alguns intelectuais reformistas do século XIX e XX, o esplendor andalusino era prova de que o Islã poderia conviver com ciência, filosofia e cultura refinada, devendo servir de inspiração para uma modernização islâmica.


Por outro lado, movimentos islamistas radicais reinterpretaram Al-Andalus como um território “usurpado”, cuja perda deve ser lembrada como ferida a ser reparada. Alguns grupos chegaram a mencionar explicitamente a “restauração de al-Andalus” como parte de sua retórica, ainda que de forma utópica e irrealista.


Esse uso político mostra como a romantização pode ser instrumentalizada de formas opostas: tanto como ideal de convivência e progresso, quanto como bandeira de revanche histórica.


Al-Andalus como modelo cultural


Além da poesia e da política, o mito andalusí foi reapropriado também no campo cultural e artístico contemporâneo. Festivais de música, recriações arquitetônicas e narrativas cinematográficas evocam a Andaluzia como símbolo de uma identidade híbrida, onde muçulmanos, cristãos e judeus conviveram em relativo equilíbrio.


Essa apropriação serve, em muitos contextos, como resposta a crises identitárias do presente. Para sociedades árabes fragmentadas por conflitos sectários, Al-Andalus aparece como memória de uma época em que o Islã floresceu em diálogo com o outro, oferecendo uma narrativa alternativa à do conflito perpétuo.


Críticas à romantização


Embora Al-Andalus seja constantemente evocado como exemplo de convivência e esplendor, a historiografia moderna tem sido cautelosa quanto a essa visão idealizada. Pesquisadores como Richard Fletcher, Eduardo Manzano, Hugh Kennedy e Janina Safran chamam atenção para os riscos de transformar a Andaluzia islâmica em mito político ou cultural, apagando suas contradições históricas.


A convivência não era igualdade


O termo convivencia, popularizado por Américo Castro no século XX, sugere um convívio harmonioso entre muçulmanos, judeus e cristãos. No entanto, estudos recentes mostram que a convivência era mais coexistência pragmática do que verdadeira igualdade.


  • Cristãos e judeus, como dhimmi, estavam subordinados a um estatuto jurídico inferior, pagando impostos especiais (jizya) e sujeitos a restrições sociais.

  • Havia períodos de tolerância relativa, mas também de perseguições e massacres, como o ocorrido contra os judeus em Granada em 1066.

  • Com a chegada dos almóadas no século XII, por exemplo, a pressão pela conversão ao Islã aumentou significativamente.


Assim, a imagem de uma sociedade plenamente tolerante ignora as hierarquias religiosas e sociais vigentes.


Violência e guerra constante


Outro ponto frequentemente omitido na romantização é o caráter bélico da história andalusina. Entre guerras civis internas, disputas dinásticas, rebeliões locais e a constante pressão dos reinos cristãos ao norte, Al-Andalus esteve em permanente estado de conflito. O esplendor cultural convivia com instabilidade política crônica.


Historiadores como Eduardo Manzano Moreno destacam que o Califado de Córdoba, em seu auge, só se manteve coeso por meio de forte aparato militar e diplomático, além de pesados tributos.


O mito como ferramenta ideológica


A romantização também é criticada porque pode ser usada como ferramenta ideológica:


  • Na Europa, para exaltar a ideia de uma “Espanha exótica” e diferenciada, ocultando a complexidade histórica.

  • No mundo árabe, para alimentar discursos nacionalistas ou pan-islâmicos, projetando sobre o passado ideais que não correspondem às realidades medievais.

  • No debate acadêmico, o mito da convivência muitas vezes serve como contraponto anacrônico para discutir multiculturalismo contemporâneo.


O equilíbrio historiográfico


O desafio dos historiadores é reconhecer os avanços reais de Al-Andalus — sua arquitetura, filosofia, ciências e artes — sem reduzir esse período a um mito simplificador. A crítica à romantização não deve apagar o legado cultural, mas sim contextualizá-lo em meio a um cenário de tensões e contradições.


Como ressalta Richard Fletcher em Moorish Spain, Al-Andalus foi ao mesmo tempo um espaço de extraordinário florescimento e de severas desigualdades, marcado por momentos de abertura e de intolerância. Ignorar um dos lados em favor do outro é ceder ao mito em detrimento da história.


Al-Andalus e a política identitária atual


A romantização de Al-Andalus não é apenas um fenômeno acadêmico ou literário. Ela continua presente nos debates políticos contemporâneos, funcionando como metáfora poderosa em torno de identidade, imigração e memória histórica. Tanto na Europa quanto no mundo árabe-islâmico, Al-Andalus é convocado para sustentar projetos ideológicos diversos, muitas vezes em conflito entre si.


Multiculturalismo e imigração na Europa


Na Europa atual, Al-Andalus é frequentemente lembrado como exemplo de convivência inter-religiosa e cultural, servindo de referência em debates sobre imigração e integração de muçulmanos. Políticos, intelectuais e movimentos progressistas evocam o mito da convivencia para argumentar que a diversidade religiosa e cultural é possível e desejável.

Essa leitura, porém, muitas vezes ignora as hierarquias sociais do passado e projeta sobre a Idade Média valores modernos de igualdade e pluralismo. Ainda assim, o uso do mito revela a força simbólica de Al-Andalus como alternativa à narrativa de choque de civilizações.


Nostalgia islâmica e discursos radicais


No mundo islâmico, Al-Andalus ocupa lugar de destaque como símbolo de paraíso perdido. Poetas, intelectuais e políticos o evocam como prova da glória islâmica passada. Em discursos mais radicais, o tema aparece como bandeira de revanche histórica. Grupos islamistas, por exemplo, chegaram a mencionar Al-Andalus como “terra usurpada”, parte de uma memória de perda que deveria ser reparada.


Esse uso político extremista contrasta com a visão culturalista que celebra a Andaluzia como espaço de diálogo. Assim, Al-Andalus pode ser ao mesmo tempo uma utopia de tolerância e um estandarte de militância.


Espanha e memória nacional


Na própria Espanha, a relação com Al-Andalus é complexa. Durante séculos, a memória oficial construída após 1492 exaltava a Reconquista como triunfo da identidade cristã sobre o Islã. Apenas a partir do século XIX, e especialmente no século XX, o país começou a valorizar o legado islâmico como parte integrante de sua herança cultural.


Hoje, monumentos como a Alhambra e a Mesquita de Córdoba são símbolos nacionais e atrações turísticas, mas sua carga simbólica ainda desperta debates. Setores mais conservadores podem minimizar a herança islâmica, enquanto correntes progressistas a exaltam como parte constitutiva da identidade espanhola plural.


Al-Andalus como “espaço de memória”


No sentido de Pierre Nora, Al-Andalus tornou-se um verdadeiro lieu de mémoire, um espaço de memória disputado. Sua romantização persiste porque oferece diferentes narrativas identitárias:


  • Para a Europa multiculturalista, um modelo de diversidade.

  • Para o mundo árabe, um símbolo de glória e perda.

  • Para a Espanha, um capítulo ambíguo entre orgulho e trauma.

Essa plasticidade explica porque o mito continua vivo e disputado, mais de cinco séculos após a queda de Granada.


Conclusão


A história de Al-Andalus é, ao mesmo tempo, realidade e imaginação. Por quase oito séculos, a Península Ibérica foi um espaço de encontro, tensão e conflito entre diferentes culturas e religiões. Seus feitos em arquitetura, filosofia, ciência e literatura são inegáveis e marcaram profundamente a formação da civilização europeia e mediterrânea. Mesquita de Córdoba, Alhambra, Averróis, Maimônides e Ibn Hazm são testemunhos concretos de uma era que brilhou intensamente.


Contudo, a imagem de Al-Andalus que atravessou os séculos foi muito além da realidade. A partir do romantismo europeu do século XIX, Granada e Córdoba se converteram em símbolos de um “Oriente perdido” dentro da Europa. Nos mundos árabe e islâmico, Granada passou a encarnar a nostalgia de uma glória perdida, evocada em poemas, discursos e ideais políticos. Na Espanha contemporânea, o passado andalusino é reapropriado ora como orgulho patrimonial, ora como lembrança de divisão.


Esse duplo movimento — memória e mito — explica por que Al-Andalus ainda fascina. Para uns, é exemplo de convivência e pluralidade; para outros, é sinal de derrota e exílio; para alguns, é simples mercadoria turística; e, para historiadores, é sobretudo um campo de investigação complexo, que exige separar o que foi experiência histórica do que se tornou projeção idealizada.


A romantização de Al-Andalus revela mais sobre os anseios das sociedades modernas do que sobre a própria Idade Média. Ela serve como espelho no qual se projetam desejos de harmonia cultural, nostalgias de grandeza ou disputas identitárias. Reconhecer isso não diminui sua importância; pelo contrário, ajuda a compreender como a história é continuamente reinterpretada para atender às necessidades do presente.


Assim, estudar Al-Andalus significa navegar entre o esplendor real e o mito criado. Significa reconhecer que houve tanto ciência, poesia e arquitetura quanto guerras, perseguições e desigualdades. Significa, sobretudo, entender que sua força não está apenas no que foi, mas no que continua a significar. E talvez seja justamente essa maleabilidade, essa capacidade de ser constantemente reinventado, que mantém vivo o fascínio por Al-Andalus até hoje.

Fontes


ASTRO, Américo. España en su historia: cristianos, moros y judíos. Buenos Aires: Losada, 1948.

FLETCHER, Richard. Moorish Spain. Berkeley: University of California Press, 1992.


KENNEDY, Hugh. Muslim Spain and Portugal: A Political History of al-Andalus. London: Routledge, 1996.


LOWNEY, Chris. A Vanished World: Muslims, Christians, and Jews in Medieval Spain. Oxford: Oxford University Press, 2005.


MANZANO MORENO, Eduardo. La Edad Media en la España Musulmana. Madrid: Alianza Editorial, 1992.


MENOCAL, María Rosa. The Ornament of the World: How Muslims, Jews, and Christians Created a Culture of Tolerance in Medieval Spain. Boston: Little, Brown and Company, 2002.


SAFRAN, Janina M. Defining Boundaries in al-Andalus: Muslims, Christians, and Jews in Islamic Iberia. Ithaca: Cornell University Press, 2013.


WATT, W. Montgomery. A History of Islamic Spain. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1965.

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