ASTROLOGIA NA IDADE MÉDIA: ENTRE FÉ, CIÊNCIA E PODER
- História Medieval

- 17 de ago.
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A Idade Média foi um período em que o céu não era visto apenas como um espaço distante e misterioso, mas como um grande livro escrito por Deus, no qual se podiam ler sinais, presságios e verdades ocultas. O homem medieval acreditava que a ordem celeste refletia diretamente na ordem terrestre, e que compreender os movimentos dos astros significava decifrar parte da vontade divina. Nesse sentido, a astrologia ocupava um papel fundamental na mentalidade da época: ela não era uma curiosidade marginal ou prática obscura, mas parte essencial da vida intelectual, espiritual e até política da Europa medieval.
O olhar para os astros tinha múltiplas funções. Servia tanto para o camponês, que desejava prever o tempo da colheita, quanto para o médico, que associava a saúde humana à posição das estrelas no momento do nascimento ou de uma enfermidade. Reis e papas também consultavam astrólogos antes de decisões importantes, seja para iniciar uma guerra, seja para selar um matrimônio dinástico. Ao mesmo tempo, a astrologia nunca esteve livre de críticas: a Igreja, embora em muitos momentos tenha tolerado e até utilizado cálculos astrológicos, via com desconfiança a ideia de que o destino humano pudesse estar sujeito ao movimento dos planetas e não apenas à providência divina.
Assim, falar de astrologia na Idade Média é mergulhar em um universo que mistura religião, ciência, filosofia e superstição. Ela estava presente nas universidades, nos mosteiros, nas cortes reais e até nas aldeias rurais, servindo de ponte entre o mundo visível e o invisível. Para compreender como esse saber floresceu no medievo, é necessário primeiro olhar para suas origens: a astrologia medieval não nasceu de forma espontânea, mas foi herdeira de um longo processo de transmissão cultural que envolveu gregos, romanos, árabes e cristãos.
Heranças da Antiguidade: Dos Caldeus aos Árabes
A astrologia medieval foi construída sobre bases antigas. Muito antes de Santo Agostinho ou Tomás de Aquino refletirem sobre o tema, povos do Oriente Próximo já observavam o céu com objetivos religiosos e práticos. Os babilônios e caldeus, por exemplo, desenvolveram sofisticados sistemas de observação astronômica por volta do segundo milênio a.C., registrando eclipses, conjunções planetárias e movimentos lunares em tábuas de argila. Para eles, o céu era um espelho da vontade dos deuses, e cada fenômeno possuía valor oracular. Essa tradição, profundamente ligada ao culto, espalhou-se para o mundo grego, onde sofreu uma primeira transformação.
Os gregos foram os grandes sistematizadores da astrologia antiga. Filósofos como Platão e Aristóteles discutiram a ordem cósmica e a influência dos astros sobre o mundo sublunar. Mas foi com o estoicismo que se fortaleceu a ideia de uma conexão necessária entre cosmos e destino humano: segundo essa visão, o universo era regido por uma razão universal (o logos), e os astros eram instrumentos dessa ordem racional. Autores como Hiparco e Ptolomeu (século II d.C.) deram à astrologia um caráter quase científico. O célebre tratado de Ptolomeu, o Tetrabiblos, tornou-se a obra de referência da astrologia até a Idade Média, defendendo que, embora os astros não determinem de forma absoluta os acontecimentos, exercem forte influência sobre o caráter e as tendências da vida humana.
O mundo romano herdou essa tradição grega e a aplicou de maneira prática. Imperadores como Augusto consultavam horóscopos, e inscrições encontradas em Pompeia e em outras cidades mostram a popularidade da astrologia entre as camadas urbanas. Ao mesmo tempo, escritores como Cícero e Sêneca levantaram críticas filosóficas contra a pretensão determinista dos astrólogos, uma tensão que reapareceria mais tarde no pensamento cristão.
Com a queda do Império Romano do Ocidente, boa parte do saber clássico se perdeu na Europa, mas sobreviveu no Império Bizantino e, sobretudo, foi preservado, ampliado e transmitido pelo mundo islâmico. A partir do século VIII, durante o califado abássida em Bagdá, desenvolveu-se um intenso processo de tradução de textos gregos para o árabe, e obras como o Tetrabiblos de Ptolomeu ganharam nova vida. Os sábios árabes não apenas conservaram, mas também aperfeiçoaram a astrologia, combinando-a com os avanços da matemática, da astronomia e da medicina. Autores como Albumasar (Abū Ma‘shar al-Balkhī) no século IX foram fundamentais para consolidar a astrologia como disciplina respeitável. Seus tratados circularam amplamente no mundo islâmico e, mais tarde, chegaram à Europa latina, especialmente através da Península Ibérica.
É nesse contexto que, a partir do século XII, quando as escolas de tradução de Toledo e da Sicília começaram a verter textos árabes para o latim, a astrologia ressurgiu com força no Ocidente medieval. Esse renascimento coincidiu com o florescimento das primeiras universidades, onde a astrologia foi incorporada como parte do quadrivium, ao lado da aritmética, da geometria, da música e da astronomia. Ou seja, a astrologia medieval não era considerada magia ou superstição, mas uma ciência legítima, herdada da Antiguidade e enriquecida pelos árabes, que buscava compreender as conexões entre o macrocosmo (o universo) e o microcosmo (o homem).
A Tensão entre Livre-Arbítrio e Destino
Desde os primeiros séculos do cristianismo, a astrologia foi alvo de debates acalorados. Para a fé cristã, um dos pilares da vida espiritual era o livre-arbítrio: o ser humano tinha a capacidade de escolher entre o bem e o mal, sendo responsável por seus pecados e por sua salvação. A astrologia, por outro lado, sugeria que muitos aspectos da vida estavam predeterminados pelos astros no momento do nascimento, ou influenciados por conjunções celestes. Essa tensão colocava em xeque a própria doutrina da Igreja.
Santo Agostinho (354–430), uma das figuras mais influentes da Patrística, condenou a astrologia de maneira veemente em sua obra A Cidade de Deus. Ele narrou inclusive sua própria experiência de juventude, quando fora enganado por astrólogos que lhe prometeram previsões certeiras. Para Agostinho, era inconcebível que gêmeos, nascidos sob o mesmo céu, pudessem ter destinos completamente diferentes — um argumento clássico contra a validade dos horóscopos. Além disso, sustentar que os astros determinavam o curso da vida significava diminuir a onipotência de Deus e negar a liberdade humana.
Contudo, nem todos os pensadores cristãos foram tão radicais. Alguns procuraram conciliar astrologia e fé. Argumentava-se que os astros poderiam, sim, influenciar o corpo — o clima, as doenças, a fertilidade —, mas nunca a alma ou a vontade. Assim, a astrologia seria útil enquanto ciência natural, mas não poderia determinar o caminho espiritual do homem. Essa distinção foi fundamental para que a astrologia encontrasse espaço dentro do pensamento medieval.
A Astrologia no Discurso Teológico
Na Idade Média, surgiram diversas tentativas de classificar a astrologia. Muitos autores distinguiam entre:
Astrologia Natural: ligada aos efeitos físicos dos astros sobre o mundo sublunar, como as marés, o crescimento das plantas, os humores do corpo humano. Essa forma era geralmente aceita, pois correspondia a fenômenos observáveis e podia auxiliar tanto na agricultura quanto na medicina.
Astrologia Judiciária: aquela que pretendia prever o futuro individual ou coletivo (guerras, mortes, sucessos políticos). Essa era vista com desconfiança, pois se aproximava da adivinhação e parecia restringir a ação da providência divina.
Essa classificação permitiu que muitos teólogos aceitassem parcialmente a astrologia sem caírem em contradição com a doutrina. Um exemplo notável foi Tomás de Aquino (1225–1274). Em sua Suma Teológica, ele reconheceu que os corpos celestes podiam influenciar o corpo humano e até a imaginação, mas reforçou que a razão e a vontade, enquanto faculdades espirituais, permaneciam livres da determinação astral. Para Aquino, os astros eram instrumentos de Deus, mas não senhores do destino humano.
Condenações e Tolerâncias da Igreja
Apesar dessa tentativa de conciliação, a Igreja nunca deixou de olhar a astrologia com suspeita. Sínodos e concílios emitiram decretos contra a prática adivinhatória, e o Direito Canônico frequentemente a associava à superstição e à heresia. Em 1227, o papa Gregório IX condenou certas formas de astrologia que buscavam prever o futuro absoluto. Mais tarde, no século XIV, o papa João XXII chegou a proibir sob pena de excomunhão aqueles que fizessem horóscopos sobre sua vida ou sobre a data de sua morte — revelando, inclusive, o quanto a prática estava presente até mesmo no coração do poder eclesiástico.
Entretanto, há uma ambiguidade evidente. Por um lado, a Igreja reprimia a astrologia judiciária; por outro, permitia e até incentivava a astrologia natural, sobretudo em seu uso médico. Universidades ligadas à Igreja, como Paris ou Bolonha, ensinavam astrologia dentro das cátedras de medicina. Muitos monges copiaram e comentaram tratados astrológicos em seus scriptoria, preservando o conhecimento para as gerações seguintes.
Essa convivência paradoxal reflete bem o espírito medieval: a astrologia não era vista de maneira unívoca, mas disputada entre aceitação parcial e rejeição categórica. A prática continuou viva não apenas por sua força cultural, mas porque oferecia respostas e ferramentas concretas para lidar com as incertezas da vida cotidiana.
A Astrologia Médica
Entre os usos mais difundidos da astrologia estava a medicina. Na teoria dos quatro humores (sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra), cada humor estava relacionado a um planeta e a um signo do zodíaco. A saúde era entendida como equilíbrio dessas forças, e o médico recorria às estrelas para identificar a melhor hora de aplicar um tratamento, fazer sangrias ou administrar remédios.
Um exemplo clássico era a chamada “astrologia iatromatemática”, que buscava relacionar doenças a movimentos celestes. Existiam até diagramas chamados de “homens zodiacais” (ou zodiac man), representando o corpo humano dividido em zonas regidas pelos signos: Áries dominava a cabeça, Touro o pescoço, Gêmeos os braços, e assim por diante até Peixes, que regia os pés. Assim, um cirurgião evitava operar em determinada parte do corpo se a Lua estivesse no signo correspondente.
Universidades como Montpellier e Salerno, grandes centros médicos medievais, incluíam a astrologia em seus currículos. Muitos médicos eram também astrólogos, e príncipes não hesitavam em consultar seus horóscopos de saúde.
Agricultura e o Ritmo das Estações
No campo, a astrologia era parte da vida do camponês. A observação do céu ajudava a definir o momento certo para plantar e colher. Almanaques e calendários astrológicos circulavam entre vilas e mosteiros, indicando quais fases da Lua eram melhores para semear trigo, podar videiras ou colher ervas medicinais.
A Lua, em especial, exercia papel central: acreditava-se que a seiva das plantas, assim como os humores do corpo humano, subiam e desciam conforme seu ciclo. Não à toa, muitos rituais agrícolas medievais misturavam práticas cristãs (como bênçãos nos campos) com conselhos astrológicos.
Astrologia e a Guerra
Mesmo a arte da guerra não escapava à influência das estrelas. Reis e comandantes militares consultavam astrólogos antes de travar batalhas, iniciar cercos ou assinar tratados. O dia e a hora exatos de marchar com os exércitos podiam depender do movimento dos astros.
Um exemplo notável é o de Henrique V da Inglaterra, que, segundo algumas crônicas, recorreu a astrólogos na época da famosa Batalha de Azincourt (1415). Embora os detalhes se misturem à lenda, não é improvável que os conselhos astrais tivessem algum peso em campanhas militares — afinal, os reis buscavam qualquer vantagem possível.
Casamento, Heranças e Negócios
A astrologia também influenciava a vida privada. Horóscopos eram feitos para avaliar a compatibilidade de casais, ajudando famílias nobres a escolher alianças matrimoniais. Em sociedades em que casamentos tinham forte peso político, a consulta aos astros oferecia uma justificativa extra para legitimar uniões.
Em contratos de herança, fundações de cidades, ou até mesmo em decisões comerciais, mercadores e juristas recorriam a cálculos astrais. Os mercadores italianos, por exemplo, eram conhecidos por usar efemérides (tabelas das posições planetárias) para prever condições favoráveis em viagens marítimas.
O Fascínio Popular
Não apenas nobres e eruditos, mas também o povo simples via nos astros uma linguagem para interpretar o mundo. Feiras e mercados contavam com adivinhos que liam horóscopos, e muitas famílias guardavam almanaques astrológicos.
Esse fascínio popular é perceptível em registros de julgamentos da Inquisição, onde muitos acusados de práticas supersticiosas admitiam ter consultado astrólogos. A astrologia, nesse sentido, atravessava todas as camadas sociais — do trono ao vilarejo.
O Papel da Astrologia nas Monarquias
Na Idade Média, a figura do rei era vista não apenas como governante, mas como representante da ordem cósmica na Terra. Por isso, não é surpreendente que a astrologia fosse amplamente consultada em momentos decisivos, como coroações, guerras, alianças matrimoniais ou fundações de cidades.
Em várias cortes europeias, astrólogos eram figuras quase tão importantes quanto conselheiros e cronistas. Eles traçavam horóscopos do nascimento real, interpretavam eclipses e avisavam sobre presságios de pestes ou revoltas. A astrologia não era apenas superstição — ela servia como uma forma de racionalizar o futuro em tempos de enorme incerteza.
Afonso X, o Sábio (Castela e Leão)
Um dos exemplos mais notáveis é Afonso X de Castela (1221–1284), conhecido como “o Sábio”. Sob sua proteção, foram elaboradas as Tábuas Alfonsinas, um dos mais importantes conjuntos de tabelas astronômicas da Idade Média. Embora de base científica, essas tábuas tinham aplicação direta na astrologia, pois permitiam calcular posições planetárias com maior precisão.
Afonso X acreditava firmemente que os astros influenciavam o destino dos homens e dos reinos. Sua corte reunia cristãos, judeus e muçulmanos dedicados a traduzir obras árabes e greco-romanas de astrologia, dando origem a um florescimento intelectual sem paralelo na Península Ibérica.
Papas e a Igreja de Roma
Apesar das críticas oficiais à astrologia determinista, muitos papas não resistiram a consultar astrólogos. Durante a Idade Média tardia, registros apontam que papas como Sisto IV e Júlio II recorreram a cálculos astrais antes de tomar decisões políticas ou militares.
Além disso, a construção da própria Basílica de São Pedro teria levado em conta aspectos astrais em determinados momentos de sua fundação, embora esse ponto seja debatido entre historiadores.
Essa relação ambígua entre fé e astrologia evidencia como, mesmo combatida em teoria, ela se infiltrava nas práticas do poder espiritual.
Os Reis Ingleses e seus Astrólogos
Na Inglaterra, a corte medieval manteve uma relação intensa com a astrologia. Ricardo II (1367–1400) ficou famoso por consultar astrólogos regularmente, e chegou a ter mapas astrais feitos para justificar decisões políticas.
Já no período das Guerras das Rosas, astrólogos eram até perseguidos por prever a queda de reis ou mudanças de dinastias, o que mostra o peso atribuído às previsões. Henrique VII, fundador da dinastia Tudor, teria recorrido a astrólogos para legitimar sua vitória sobre Ricardo III.
Florença e o Renascimento das Estrelas
Na Itália, especialmente em Florença, a astrologia floresceu com força durante o Renascimento, mas suas raízes estavam no período medieval. Famílias poderosas como os Médici mantinham em suas cortes estudiosos que misturavam filosofia, alquimia e astrologia.
Essa prática era tão central que alguns historiadores afirmam que decisões comerciais de Florença — uma das maiores potências mercantis da Europa — estavam atreladas a cálculos astrais, influenciando inclusive o calendário de suas grandes feiras internacionais.
Astrologia e a Fundação de Cidades
Outra aplicação importante da astrologia política era a eleição de datas fundacionais. A ideia era escolher um momento em que os planetas estivessem favoráveis para garantir prosperidade e estabilidade à cidade. Há relatos de que cidades como Praga e Milão tiveram seus atos fundacionais associados a cálculos astrológicos.
O Problema da Predestinação
A maior tensão entre astrologia e cristianismo estava no tema da liberdade humana. Desde os Padres da Igreja, como Santo Agostinho (354–430), já havia críticas severas contra a ideia de que os astros poderiam determinar os atos humanos. Para Agostinho, isso feria o princípio do livre-arbítrio, essencial para a responsabilidade moral.
Em sua obra A Cidade de Deus, ele atacou a prática, lembrando que gêmeos nascem sob os mesmos signos, mas levam vidas radicalmente diferentes. Essa observação simples tornou-se um dos argumentos mais usados contra a astrologia determinista ao longo da Idade Média.
Oposição dos Concílios
A Igreja não permaneceu passiva. Diversos concílios medievais proibiram ou restringiram práticas astrológicas, especialmente aquelas que lidavam com previsões sobre o destino da alma ou de líderes políticos.
O Concílio de Braga (561) condenou práticas divinatórias ligadas à observação dos astros.
O Concílio de Paris (829) também reforçou que consultar astrólogos era superstição incompatível com a fé cristã.
Ainda assim, a astrologia não desapareceu, mas passou a ser regulada. Era tolerado o estudo astronômico “natural” — usado, por exemplo, para calcular a data da Páscoa —, mas proibida a “astrologia judiciária”, que pretendia prever destinos individuais.
Tomás de Aquino e a Astrologia “Moderada”
Segundo Aquino:
Os astros poderiam influenciar o corpo (temperamentos, humores, condições naturais).
Mas não determinavam a vontade humana, que permanecia livre e sujeita à razão e à graça divina.
Esse posicionamento abriu espaço para uma “astrologia lícita”, aceita por parte da Igreja, especialmente em universidades e cortes.
A Ambiguidade Papal
Apesar das proibições, muitos papas recorriam a astrólogos, revelando uma relação ambígua. Um exemplo é o papa Silvestre II (Gerberto de Aurillac), no ano 1000, que estudou profundamente astronomia e foi acusado de práticas astrológicas e mágicas.
Mais tarde, no século XIV, João XXII foi um dos pontífices que condenaram práticas de feitiçaria e astrologia mágica, mas, contraditoriamente, registros mostram astrólogos frequentando sua corte.
Perseguições e Risco de Heresia
Astrologia excessivamente determinista podia levar alguém a ser acusado de heresia ou de práticas ligadas à magia proibida. Alguns astrólogos foram perseguidos pela Inquisição, especialmente quando suas previsões se misturavam com rituais mágicos ou alquímicos.
Ainda assim, muitos escapavam porque eram protegidos por reis e nobres, que os consideravam indispensáveis. Esse duplo movimento de repressão e proteção explica a permanência da astrologia no coração da sociedade medieval.
Medicina Astrológica e a Teoria dos Humores
Na Idade Média, a medicina era profundamente influenciada pela teoria dos quatro humores de Hipócrates e Galeno: sangue, fleuma, bile amarela e bile negra. Cada humor estava ligado a um elemento (ar, água, fogo e terra), e também a um planeta e signo zodiacal.
Por exemplo:
Sangue → ligado ao ar, a Júpiter e à primavera.
Bile negra → ligada à terra, a Saturno e ao inverno.
Médicos usavam tabelas astrológicas para decidir o momento certo de realizar sangrias, aplicar purgantes ou administrar medicamentos. A crença era que o corpo e os astros estavam em sintonia, e que uma cura eficaz só poderia ocorrer se respeitasse essa harmonia cósmica.
Horóscopos de Nascimento e Batismo
Era comum que nobres encomendassem horóscopos para recém-nascidos. Muitos pais acreditavam que o mapa astral podia indicar não apenas as características físicas e temperamentais da criança, mas também seus destinos futuros — se seria um bom guerreiro, um clérigo, um governante sábio ou uma figura marcada por infortúnios.
Essa prática, porém, frequentemente chocava-se com as autoridades eclesiásticas, pois podia sugerir que o futuro da alma estava escrito nos astros. Ainda assim, a tradição persistiu, especialmente nas cortes reais, onde astrólogos eram consultados no momento do batismo para escolher datas e até os nomes das crianças.
Astrologia na Agricultura e na Vida Comum
O calendário agrícola medieval era repleto de referências astrais. Agricultores decidiam quando plantar, colher ou podar de acordo com fases da Lua e a posição dos planetas.
A Lua cheia era vista como propícia para colheitas.
A Lua nova para podas e cortes.
Certos signos, como Virgem e Touro, eram considerados férteis, enquanto outros, como Áries, eram vistos como estéreis.
Livros conhecidos como almanaques astrológicos circulavam amplamente, servindo de guia tanto para camponeses quanto para senhores feudais.
Astrologia em Casamentos e Guerras
Astrologia também influenciava decisões políticas e pessoais:
Casamentos nobres: datas eram escolhidas conforme conjunções planetárias, acreditando que garantiriam harmonia e fecundidade.
Guerras e batalhas: reis e generais muitas vezes consultavam astrólogos antes de iniciar campanhas. O próprio Frederico II do Sacro Império Romano-Germânico tinha astrólogos em sua corte, e relatos apontam que campanhas cruzadistas também consideravam presságios celestes.
Astrologia Popular e Superstições
Entre o povo, a astrologia misturava-se com crenças populares e práticas mágicas. Amuletos com signos zodiacais eram usados para proteção, e havia a crença de que certas doenças podiam ser curadas ao se expor a determinadas fases da Lua.
Essa forma de astrologia popular foi alvo de maior repressão pela Igreja, especialmente porque se confundia com feitiçaria. No entanto, sua força cultural foi tamanha que muitas dessas práticas sobreviveram até a Idade Moderna.
O Legado da Astrologia Medieval
Ao final da Idade Média, a astrologia já estava integrada às universidades, sendo estudada como parte da matemática e filosofia natural. Isso permitiu sua sobrevivência até o Renascimento, quando atingiu grande prestígio em cortes como a de Isabel I da Inglaterra e dos Médici em Florença.
Mesmo com a chegada da ciência moderna e da astronomia, a astrologia deixou marcas indeléveis: moldou o pensamento médico, agrícola e político da Idade Média, tornando-se um verdadeiro elo entre o mundo natural, o humano e o divino.
A astrologia na Idade Média não pode ser reduzida a uma simples superstição ou a um resquício de paganismo. Ela foi, na verdade, um sistema de conhecimento complexo, que integrava ciência, filosofia, religião e práticas cotidianas.
Longe de ser apenas “adivinhação”, a astrologia era um instrumento de interpretação da ordem do cosmos, usado para compreender tanto os fenômenos naturais quanto os destinos humanos. Estava presente na corte dos reis, nas universidades, nos mosteiros e até nas práticas agrícolas mais simples.
Ao mesmo tempo, ela também foi motivo de tensões e controvérsias. A Igreja, embora crítica do determinismo astrológico, não conseguiu erradicá-la, e muitos clérigos e estudiosos foram também grandes astrólogos. Essa ambiguidade revela o quanto a astrologia estava profundamente enraizada na mentalidade medieval.
Podemos afirmar que, sem a astrologia, não teríamos o mesmo desenvolvimento da astronomia, da medicina e até mesmo da filosofia natural. O legado astrológico atravessou séculos, sendo uma das pontes que ligaram a cultura medieval ao Renascimento e, posteriormente, à ciência moderna.
Assim, estudar a astrologia medieval não é apenas revisitar uma curiosidade histórica, mas compreender uma das chaves para interpretar a visão de mundo do homem medieval, em que céu e terra, divino e humano, ciência e fé se entrelaçavam de forma inseparável.
Fontes
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