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A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS NA IDADE MÉDIA: ENTRE O SAGRADO E O PROFANO

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Na Idade Média, os sonhos eram mais do que simples produtos da mente durante o sono. Eram vistos como mensagens carregadas de significado, capazes de revelar a vontade divina, prenunciar eventos futuros ou, ao contrário, enganar e seduzir a alma para o pecado. Para o homem e a mulher medievais, o mundo invisível se entrelaçava ao cotidiano de forma natural, e o sono era um momento em que a barreira entre o humano e o sobrenatural parecia mais tênue.


Herdeiros de tradições antigas — greco-romanas, bíblicas e orientais — os europeus medievais atribuíam aos sonhos um valor simbólico e espiritual que moldava decisões políticas, inspirava mudanças religiosas e influenciava até a medicina. Ao mesmo tempo, o temor de influências malignas fazia com que a interpretação dos sonhos fosse cercada de cautela, sendo cuidadosamente filtrada por critérios teológicos e morais.


Compreender como os sonhos eram interpretados na Idade Média é mergulhar em um universo em que fé, superstição, ciência e magia coexistiam. Este texto examina a trajetória da oniromancia medieval, explorando seu papel nas diferentes esferas da vida — da corte ao campo, da igreja ao leito do camponês — e analisando como a visão sobre o mundo onírico se transformou ao longo dos séculos.


As Raízes Antigas da Oniromancia


O interesse humano pelos sonhos antecede a Idade Média em milênios. Na Grécia Antiga, filósofos como Aristóteles dedicaram tratados ao tema, como De Insomniis (“Sobre os Sonhos”) e De Divinatione per Somnum (“Sobre a Adivinhação por Sonhos”), nos quais argumentava que muitos sonhos eram resultados de estímulos corporais, mas alguns poderiam conter presságios, especialmente se ocorressem em estados de “pureza” do corpo e da mente.


No campo médico, Hipócrates e seus discípulos viam os sonhos como reflexos do estado físico do paciente. Alterações nos sonhos poderiam indicar desequilíbrios internos, funcionando como sinais diagnósticos.


No mundo romano, autores como Cícero e Macróbio também discutiram a natureza dos sonhos, especialmente em obras como Comentário ao Sonho de Cipião, que influenciaria profundamente a Idade Média.


A Bíblia desempenhou um papel central na base cultural medieval sobre sonhos. Histórias como a de José, filho de Jacó, que interpretou sonhos no Egito, ou Daniel, que decifrou visões do rei Nabucodonosor, reforçavam a ideia de que Deus podia se comunicar diretamente por meio do sono. Esses exemplos bíblicos seriam amplamente citados por clérigos para validar a interpretação onírica quando alinhada com a fé cristã.


A Visão Cristã dos Sonhos


Na Europa medieval cristã, os sonhos eram filtrados pela doutrina e pelos ensinamentos dos Padres da Igreja. Santo Agostinho foi uma das vozes mais influentes, alertando que nem todo sonho vinha de Deus. Em suas obras, diferenciava três origens possíveis:


  • Divina – revelações e mensagens que orientavam para o bem.


  • Demoníaca – tentações e ilusões para afastar a alma da salvação.


  • Natural – fruto das preocupações, memórias e estados do corpo.


Outros pensadores, como Gregório Magno, adotaram postura semelhante, recomendando discernimento espiritual e aconselhando que sonhos fossem avaliados à luz das Escrituras e da moral cristã.


Sonhos também eram associados à santidade. Figuras como Santa Hildegarda de Bingen relataram visões oníricas complexas, interpretadas como revelações divinas, que influenciaram práticas religiosas e inspiraram tratados teológicos. Essas experiências, porém, passavam pelo crivo da autoridade eclesiástica, que definia sua autenticidade.


Sonhos e Demonologia: Entre a Revelação e a Tentação


No imaginário medieval, a noite não era apenas o tempo do descanso, mas também o momento em que as forças espirituais — boas ou más — agiam com maior liberdade. Acreditava-se que o sono deixava a alma mais vulnerável, tornando-a alvo de anjos e santos, mas também de demônios e espíritos malignos.


Alguns sonhos eram vistos como portadores de tentações explícitas. Sonhos eróticos, por exemplo, podiam ser interpretados como obra de demônios conhecidos como íncubos e súcubos, que buscariam corromper o indivíduo durante o repouso. Manuais e sermões advertiam que tais experiências deveriam ser combatidas com oração, jejum e confissão.


Na literatura eclesiástica, havia relatos de monges e freiras que, atormentados por sonhos lascivos ou visões perturbadoras, interpretavam tais fenômenos como ataques demoníacos destinados a desviá-los da santidade. Por outro lado, sonhar com anjos, santos ou a Virgem Maria era considerado um sinal de graça, merecendo registro e reflexão espiritual.


O Malleus Maleficarum, manual inquisitorial do fim da Idade Média (1487), embora centrado na caça às bruxas, também menciona o papel dos sonhos na ação de feiticeiras e demônios, reforçando a desconfiança em relação às experiências oníricas que fugissem da ortodoxia cristã.


Interpretação Popular e Cultura Oral


Enquanto a elite intelectual e a Igreja aplicavam filtros teológicos e filosóficos, entre o povo simples a interpretação dos sonhos estava fortemente ligada à tradição oral, ao folclore e às crenças regionais.


Nas aldeias, era comum que velhas conhecedoras de ervas e benzedeiras interpretassem sonhos de acordo com sinais da natureza. Sonhar com água corrente, por exemplo, podia ser presságio de mudanças; com fogo, indicativo de conflitos; com animais, mensagens simbólicas associadas a virtudes ou perigos.


Havia também um vasto repertório de livros de sonhos (chamados oneirocritica), alguns derivados diretamente de fontes clássicas como a obra de Artemidoro de Daldis, outros adaptados ao contexto cristão. Esses manuais, copiados e adaptados em mosteiros ou circulando em versões populares, listavam interpretações para imagens comuns nos sonhos, servindo de guia tanto para curiosos quanto para mercadores, nobres e até monges.


O Mundo Islâmico Medieval e o Diálogo Cultural


A interpretação dos sonhos na Idade Média europeia também foi influenciada pelo mundo islâmico. A civilização muçulmana, especialmente no período abássida, valorizava o estudo dos sonhos como ferramenta de autoconhecimento e revelação espiritual.


Autores como Ibn Sirin (m. 728) escreveram obras que se tornaram referência, como o Livro da Interpretação dos Sonhos, amplamente difundido no mundo árabe. Essa tradição chegaria à Península Ibérica por meio de Al-Andalus, sendo traduzida para o latim e circulando entre estudiosos cristãos e judeus.


Na visão islâmica, os sonhos eram classificados em três tipos:


  • Sonhos verdadeiros (ru’ya), enviados por Deus como orientação.


  • Sonhos ilusórios (hulm), provenientes de Satanás para inquietar o sonhador.


  • Sonhos confusos, simples reflexos da mente.


A convivência cultural na Península Ibérica fez com que essas classificações e interpretações se misturassem com tradições cristãs e judaicas, enriquecendo o repertório onírico medieval.


Uso Político e Estratégico dos Sonhos


Os sonhos também desempenharam um papel relevante na esfera política medieval. Reis, rainhas e líderes militares, conscientes do poder simbólico das visões oníricas, utilizavam-nas como ferramenta de legitimação ou propaganda.


Por exemplo, um monarca poderia afirmar ter recebido em sonho a ordem de empreender uma cruzada ou conquistar determinado território, apresentando a visão como prova da aprovação divina. Da mesma forma, vitórias militares podiam ser interpretadas como cumprimento de sonhos proféticos narrados antes da batalha.


Crônicas medievais estão repletas de passagens em que sonhos de figuras importantes eram usados para construir narrativas de poder. O sonho de Constantino, no qual teria visto a cruz e ouvido a frase “Com este sinal vencerás”, embora anterior à Idade Média, tornou-se modelo para esse tipo de relato.


8. A Medicina Medieval e os Sonhos

A medicina medieval herdou de Hipócrates e Galeno a prática de observar os sonhos como parte do diagnóstico de doenças. Médicos acreditavam que certas imagens oníricas poderiam indicar desequilíbrios nos humores corporais — sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra.


Por exemplo:


  • Sonhar com calor excessivo ou imagens de fogo podia ser interpretado como excesso de bílis amarela.


  • Sonhos aquáticos poderiam indicar predominância de fleuma.


Essa abordagem era ensinada nas escolas médicas, como em Salerno, e aparecia em tratados como o Regimen Sanitatis Salernitanum. Assim, a interpretação dos sonhos tinha não apenas valor espiritual, mas também utilidade prática na saúde.


Declínio e Transformações no Final da Idade Média


Com o avanço do pensamento escolástico e, posteriormente, o Renascimento, a interpretação dos sonhos começou a se deslocar de um campo dominado pela religiosidade para abordagens mais naturalistas. A astrologia, que muitas vezes se entrelaçava com a oniromancia, também passou a ser questionada por parte dos teólogos e acadêmicos.


Ainda assim, mesmo no século XV, sonhos continuavam a fascinar e influenciar decisões, mantendo seu lugar na cultura popular e nas cortes.


Conclusão


A interpretação dos sonhos na Idade Média foi uma prática multifacetada, na qual o sagrado e o profano se encontravam. Das visões místicas às advertências demoníacas, dos diagnósticos médicos às estratégias políticas, os sonhos eram parte essencial da vida medieval.


Eles revelam um mundo em que as fronteiras entre realidade e espiritualidade eram fluidas, e em que o sono podia ser tanto um espaço de revelação quanto de risco.


Compreender essa tradição nos permite perceber a profundidade com que o imaginário medieval entrelaçava o divino e o humano — e como, mesmo séculos depois, a fascinante arte de interpretar sonhos ainda ecoa em nossa cultura.


Fontes


Agostinho de Hipona. Confissões


Hildegard von Bingen. Scivias.


Steven F. Kruger. Dreaming in the Middle Ages.


Jean-Claude Schmitt. Ghosts in the Middle Ages.

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