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COMO AS PESSOAS COMPRAVAM ROUPAS NA IDADE MÉDIA?

Atualizado: 1 de set.

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Na Idade Média, o vestuário era muito mais do que mera proteção contra o frio ou a exposição do corpo. As roupas serviam como um código social visível, um idioma silencioso que comunicava status, profissão, devoção religiosa e até intenções políticas. Compreender como homens e mulheres adquiriam suas vestes nesse período significa mergulhar em um universo no qual a produção era artesanal, a circulação dependia de rotas comerciais arriscadas e cada tecido carregava em si o peso do trabalho humano, da hierarquia social e dos limites impostos pela Igreja e pela lei.


Ao contrário do que se imagina hoje, a maioria das pessoas não possuía um guarda-roupa variado. Para o camponês, uma ou duas peças de vestuário eram suficientes para a vida cotidiana, muitas vezes herdadas, remendadas até o desgaste completo e confeccionadas em casa, por mulheres que dominavam as técnicas de fiar e tecer o linho ou a lã. Comprar roupas novas era, para os mais pobres, quase um luxo. Já nos centros urbanos e nas cortes, a compra de roupas assumia papel central, ligada ao prestígio e ao consumo de luxo.


A produção de tecidos e roupas na Idade Média


O setor têxtil era um dos pilares da economia medieval. A confecção das roupas envolvia vários ofícios especializados: tecelões, tintureiros, alfaiates e costureiras, que muitas vezes se organizavam em corporações de ofício (guildas). Essas guildas regulavam a qualidade, controlavam os preços e delimitavam o número de mestres em uma cidade.


Em centros como Florença, Flandres e Londres, a indústria têxtil movimentava fortunas. A lã inglesa, célebre pela qualidade, era exportada para os ateliês flamengos, onde se transformava em panos finos. A seda, trazida por rotas árabes e italianas, enfeitava reis e bispos. O linho era mais barato e amplamente usado por camponeses e servos, enquanto o cânhamo produzia tecidos rústicos, ideais para roupas de trabalho. O algodão, embora presente, tornou-se mais comum apenas após os contatos intensificados com o Oriente.

Assim, antes de falar sobre onde se comprava, é necessário entender que cada roupa representava um investimento em mão de obra, matérias-primas e, em muitos casos, comércio internacional.


Onde se comprava roupa?


Mercados locais

Nos povoados e vilas, os mercados semanais eram a principal oportunidade para comprar roupas prontas, embora a oferta fosse limitada. Camponeses adquiririam peças simples, geralmente de linho ou lã, e muitas vezes de segunda mão.


Feiras regionais


As grandes feiras de Champagne, Bruges ou Gênova ofereciam algo completamente distinto. Nesses espaços de comércio internacional, circulavam tecidos flamengos de alta qualidade, sedas orientais, brocados italianos e até roupas já confeccionadas. Para a burguesia ascendente, essas feiras eram uma chance de se distinguir socialmente.


Lojas urbanas


Com o crescimento das cidades, surgiram os primeiros estabelecimentos permanentes de venda de roupas e tecidos. Alfaiates exibiam modelos, aceitavam encomendas sob medida e começavam a criar um ambiente que lembra as boutiques modernas.


Alfaiates particulares da nobreza


No topo da hierarquia, reis, príncipes e senhores contratavam alfaiates particulares, muitas vezes estrangeiros renomados, para confeccionar peças exclusivas. O vestuário, nesse caso, era um símbolo de poder e magnificência.


Preços e formas de pagamento


O valor das roupas na Idade Média era profundamente desigual. Enquanto uma túnica simples, de lã ou linho cru, podia custar o equivalente a alguns dias de trabalho de um camponês, um manto luxuoso de seda, bordado com fios dourados e pedras preciosas, podia valer tanto quanto um cavalo de guerra ou até mesmo terras.


O pagamento variava de acordo com a condição econômica do comprador. Em aldeias, o escambo ainda era comum: ovos, cereais ou pequenos animais podiam ser trocados por tecidos e vestimentas. Nas cidades, o pagamento em moedas — como o denário, o florim ou o grosso — tornava-se cada vez mais frequente, acompanhando o avanço da economia monetária medieval. Também era possível recorrer ao crédito: mercadores de tecidos muitas vezes vendiam a prazo para clientes fiéis, especialmente membros da burguesia que buscavam ascender socialmente.


Outro aspecto curioso é que roupas frequentemente apareciam como bens penhorados. Devido ao alto valor material, não era incomum ver roupas e mantos listados em inventários judiciais, testamentos e registros de dotes matrimoniais. Em muitos casos, herdar um manto representava mais do que apenas adquirir uma peça de vestuário — era receber um patrimônio.


Quem comprava o quê?

Camponeses


O camponês comum raramente comprava roupas novas. A maioria das peças era confeccionada em casa, pelas mulheres da família, com tecidos rústicos de linho ou lã local. Quando havia compra, era em mercados locais e quase sempre de roupas usadas. O aspecto prático prevalecia: roupas largas, resistentes e de cores escuras, que escondiam a sujeira e resistiam ao desgaste do trabalho.


Burgueses urbanos


Os burgueses — artesãos, comerciantes, pequenos funcionários — representavam uma nova classe em ascensão. Para eles, a roupa era um sinal de distinção social. Não era raro um mercador investir parte significativa de seus lucros em vestimentas finas, para destacar-se em feiras ou ocasiões públicas. Esse desejo de imitar a nobreza muitas vezes levou a conflitos, regulados pelas chamadas leis suntuárias.


Nobreza e realeza


Os nobres e reis utilizavam a moda como forma explícita de afirmar sua posição. Quanto mais luxuosa a roupa, mais evidente o poder. As cores tinham papel simbólico: o púrpura era associado ao poder régio; o vermelho, ao prestígio; o dourado, à riqueza. Muitas vezes, alfaiates eram importados de outros reinos apenas para confeccionar trajes exclusivos. Uma simples aparição de um monarca em público, vestindo tecidos orientais, representava uma mensagem política de riqueza e influência.


O papel das leis suntuárias


A difusão de roupas luxuosas pela burguesia incomodava tanto a nobreza quanto a Igreja. Para manter a ordem social e religiosa, surgiram as leis suntuárias, que regulavam o uso de determinados tecidos, cores e adornos.


Na Inglaterra do século XIV, por exemplo, o rei Eduardo III determinou que apenas a nobreza poderia vestir tecidos importados e sedas finas. Na França e em Florença, leis proibiam mulheres de classes baixas de usar véus bordados ou cores como o escarlate. O objetivo era impedir que comerciantes ricos se confundissem visualmente com a aristocracia tradicional.


A Igreja também via nessas leis um modo de conter a vaidade. Sermões da época criticam longas caudas em vestidos femininos, capas bordadas em ouro e calçados de pontas exageradas, chamados poulaines. Para os pregadores, o vestuário luxuoso era sinal de soberba e afastava o fiel da humildade cristã.


A influência religiosa


O vestuário medieval era profundamente marcado pela religião. Monges e clérigos possuíam regras rígidas de vestimenta: tons sóbrios, tecidos simples e ausência de adornos, simbolizando renúncia e humildade. Contudo, bispos e papas, como representantes da majestade divina, trajavam roupas luxuosas, com sedas, púrpura e bordados em ouro, reforçando sua autoridade espiritual.


Entre os leigos, a religião também influenciava. O peregrino, identificado por seu manto, bordão e concha de vieira, era uma figura comum nos caminhos da cristandade. Esses trajes eram muitas vezes comprados especificamente para a jornada, marcando a transição para uma vida de devoção. Já as festas religiosas exigiam roupas especiais: era costume vestir a melhor túnica ou manto em procissões e missas solenes.


As ordens militares e religiosas — templários, hospitalários, teutônicos — possuíam uniformes regulamentados, reforçando a disciplina e a identidade coletiva. Vestir a cruz vermelha, preta ou branca significava fazer parte de uma comunidade espiritual e guerreira.


Comércio internacional de roupas e tecidos


As roupas não eram apenas produtos de consumo local; elas se inseriam em uma rede comercial internacional. O Mediterrâneo e o norte da Europa eram as principais regiões de circulação.


  • Veneza e Gênova controlavam a entrada de sedas, brocados e algodões vindos do Oriente.

  • Flandres e Bruges produziam panos de lã finíssimos, exportados para toda a Europa.

  • Castela e Inglaterra eram grandes fornecedoras de lã bruta.

  • Feiras de Champagne funcionavam como pontos de encontro entre mercadores do Mediterrâneo e da Europa do Norte.


As Cruzadas desempenharam papel crucial na difusão de novos tecidos, cores e estilos. Nobres que retornavam do Oriente traziam consigo sedas, turbantes e túnicas bordadas, que rapidamente inspiravam a moda ocidental.


Esse comércio era tão valioso que muitas cidades enriqueceram exclusivamente pelo setor têxtil. Florença, por exemplo, construiu sua fortuna sobre a produção e exportação de tecidos, enquanto cidades flamengas prosperaram com a lã inglesa.


A moda e suas transformações


Embora lenta em comparação com o mundo moderno, a moda medieval conheceu mudanças notáveis. Do século XI ao XV, o vestuário evoluiu de cortes largos e simples para peças ajustadas ao corpo, coloridas e ornamentadas.


  • Século XI–XII: túnicas soltas, cores neutras, simplicidade.

  • Século XIII–XIV: roupas mais ajustadas, uso de botões, mangas longas e chapéus elaborados.

  • Século XV: auge da extravagância, com roupas de cores vivas, calçados de pontas longas, vestidos femininos com decotes marcantes e chapéus altíssimos (hennins).


Essas transformações eram ditadas principalmente pelas cortes reais, que funcionavam como vitrines de moda. Burgueses ricos copiavam estilos nobres, enquanto leis suntuárias tentavam frear essa imitação. O ciclo moda–proibição–inovação tornou-se uma constante no universo medieval.


Roupas como herança e dote


Na sociedade medieval, roupas não eram apenas bens de uso pessoal, mas também patrimônio. Os inventários de testamentos mostram como mantos, túnicas e vestidos eram cuidadosamente listados, muitas vezes descritos com detalhes sobre cor, tecido e ornamentos. Em alguns casos, esses itens representavam a parte mais valiosa do legado, superando utensílios domésticos ou mesmo alguns animais de criação.


Para mulheres, em especial, roupas podiam compor parte do dote matrimonial. O enxoval incluía túnicas, véus, mantos e tecidos finos, destinados a garantir prestígio ao novo lar. Uma noiva bem-vestida simbolizava não apenas a honra de sua família, mas também o investimento em alianças sociais e econômicas. Nesse sentido, herdar roupas era um gesto carregado de significado, ligando gerações por meio do tecido e da costura.


A simbologia das cores e dos tecidos


Na Idade Média, as cores não eram vistas como meros elementos estéticos: carregavam mensagens sociais e espirituais.


  • Púrpura: associada ao poder régio e ao sagrado, era cor de imperadores e bispos.

  • Vermelho: simbolizava prestígio, riqueza e, em contextos religiosos, o martírio.

  • Verde: ligado à juventude, fertilidade e esperança, mas também à instabilidade.

  • Preto: raramente usado por camadas populares, tornou-se símbolo de autoridade, sobriedade e luto.

  • Branco: representava pureza, espiritualidade e simplicidade, muito presente em vestes religiosas.


Os tecidos também carregavam significados. A lã indicava rusticidade e trabalho; a seda, luxo e poder; o linho, pureza e modéstia. O uso de certos tecidos era, portanto, uma afirmação social e religiosa tanto quanto uma escolha prática.


O vestuário feminino e masculino


O vestuário medieval variava não apenas por classe social, mas também por gênero.


Vestuário masculino


Os homens, em geral, vestiam túnicas longas ou curtas, sobrepostas por mantos. No campo, predominavam peças simples de lã ou linho cru, acompanhadas de calças justas (chausses) e botas de couro. Entre nobres e cavaleiros, roupas ajustadas ao corpo, adornadas com bordados e cintos trabalhados, tornavam-se símbolos de distinção. O uso de armaduras, por sua vez, reforçava o elo entre vestuário e função militar.


Vestuário feminino


As mulheres usavam longas túnicas, conhecidas como kirtles, e vestidos sobrepostos, muitas vezes acompanhados de véus e toucados. Entre as camadas populares, prevaleciam roupas simples, ajustadas para resistir ao trabalho. Já as damas da nobreza exploravam tecidos finos, cores vibrantes e adornos em joias. No final da Idade Média, os vestidos femininos ganhavam mangas amplas, decotes elaborados e o famoso hennin, chapéu cônico que se tornou ícone da moda cortesã.


As diferenças de gênero no vestuário refletiam também expectativas sociais: a roupa masculina enfatizava movimento e função, enquanto a feminina simbolizava status e decoro.


O mercado de roupas usadas


Um aspecto pouco lembrado, mas fundamental, é o mercado de roupas de segunda mão. Em muitas cidades medievais, existiam mercados dedicados exclusivamente à venda de roupas usadas, onde artesãos, aprendizes e camponeses urbanos podiam adquirir peças a preços mais acessíveis.


Esses mercados eram populares porque roupas eram bens caros e duráveis. Uma peça usada, mesmo remendada, ainda possuía grande valor. Há registros de roupas sendo alugadas para ocasiões especiais, como festas religiosas, casamentos e cerimônias públicas. Essa prática reforça a ideia de que o vestuário medieval não era descartável, mas circulava continuamente, adquirindo novas histórias com cada proprietário.


Conclusão


A maneira como as pessoas compravam roupas na Idade Média revela muito mais do que simples hábitos de consumo. O vestuário estava no coração das relações sociais, econômicas e religiosas. Comprar roupas significava, muitas vezes, investir em prestígio, afirmar hierarquias e até mesmo garantir segurança espiritual.


Camponeses dependiam do mercado local ou da produção caseira, burgueses buscavam distinção através de roupas luxuosas, e nobres transformavam seus trajes em instrumentos de poder e propaganda. As leis suntuárias tentavam manter essas fronteiras, mas a moda, lenta e silenciosa, insistia em se transformar.


As roupas eram bens valiosos, transmitidos como herança, utilizados como dote e constantemente reutilizados. Cores e tecidos transmitiam mensagens simbólicas, enquanto o comércio internacional de lã, seda e linho conectava o Ocidente a rotas que iam do Mediterrâneo ao Oriente.


Assim, ao investigar como as pessoas compravam roupas na Idade Média, descobrimos não apenas práticas comerciais, mas também a própria lógica de uma sociedade que via na roupa o reflexo visível da ordem que regia a cristandade.


Fontes


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