DESVENDANDO A BRUXARIA: UMA ANÁLISE HISTÓRICA DA IDADE MÉDIA À MODERNA
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DESVENDANDO A BRUXARIA: UMA ANÁLISE HISTÓRICA DA IDADE MÉDIA À MODERNA

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A palavra “bruxaria” desperta, até hoje, fascínio e temor. Ela evoca imagens de mulheres de chapéu pontudo, caldeirões fumegantes, feitiços e pactos diabólicos. Contudo, a história da bruxaria é bem mais complexa do que os estereótipos modernos. Trata-se de um fenômeno que atravessa séculos, variando em significado conforme o contexto cultural, social e religioso.


Na Idade Média, a bruxaria ainda não possuía o contorno demonológico que a marcaria a partir do final do período medieval e no início da Idade Moderna. As práticas populares de magia, adivinhação e cura eram comuns e, muitas vezes, toleradas. Parteiras, curandeiras e adivinhos desempenhavam funções sociais indispensáveis, sobretudo em comunidades rurais. A Igreja, embora condenasse a superstição, distinguia tais práticas das heresias, vendo-as mais como desvios ingênuos do que como alianças com o demônio.


Com o passar dos séculos, porém, essa percepção se transformou. A partir do século XIV, em meio a crises como a Peste Negra, guerras prolongadas e fome, a ansiedade coletiva intensificou-se. Teólogos e juristas passaram a associar práticas mágicas a pactos diabólicos, elaborando uma demonologia cada vez mais detalhada. A bruxa deixou de ser apenas a “feiticeira aldeã” para tornar-se figura ameaçadora, acusada de voar à noite, participar de sabás e corromper a ordem cristã.


No início da Idade Moderna, essa construção cultural resultou em uma das maiores ondas repressivas da história europeia: as caças às bruxas, que vitimaram dezenas de milhares de pessoas, majoritariamente mulheres. Esse processo não pode ser entendido sem recuar às raízes medievais, onde crenças populares, tensões sociais e discursos religiosos se entrelaçaram para criar a imagem da bruxa como inimiga pública.


Este artigo busca desvendar essa trajetória: da bruxaria popular tolerada na Idade Média à perseguição sistemática da Idade Moderna.


A bruxaria na Idade Média

Práticas populares de magia e cura


Na vida cotidiana medieval, a magia estava presente em diversas formas. Curandeiras e parteiras usavam ervas, rezas e fórmulas para aliviar dores, tratar doenças ou ajudar em partos. Essas práticas não eram necessariamente vistas como bruxaria no sentido negativo, mas como parte da cultura local.


A fronteira entre religião e magia era tênue. Orações podiam ser acompanhadas de gestos considerados mágicos; amuletos eram usados para afastar o mau-olhado; e fórmulas escritas combinavam elementos cristãos e populares. Essa interpenetração mostra que o “mágico” e o “religioso” não eram esferas separadas, mas elementos de um mesmo universo simbólico.


O Canon Episcopi e a tolerância relativa


Um dos primeiros documentos eclesiásticos a tratar do tema foi o Canon Episcopi, redigido entre os séculos IX e X. Esse texto não falava de pactos diabólicos nem de sabás. Pelo contrário, afirmava que mulheres que acreditavam voar à noite com a deusa Diana ou com espíritos estavam sendo enganadas pelo demônio. A orientação não era executar essas mulheres, mas corrigi-las, instruindo-as de que suas experiências eram ilusórias.

Esse documento ilustra a posição da Igreja medieval durante grande parte da Alta Idade Média: a bruxaria não era ainda equiparada à heresia. Via-se a crença em feitiçarias como superstição ingênua, não como ameaça cósmica.


Magia e heresia


A partir do século XII, contudo, a situação começou a mudar. Com o fortalecimento das universidades e do direito canônico, os teólogos passaram a sistematizar o combate às práticas consideradas supersticiosas. Paralelamente, a luta contra heresias, como a dos cátaros e valdenses, levou a uma associação mais estreita entre desvio religioso e práticas mágicas.


Crônicas do período relatam acusações de que hereges praticavam ritos obscuros, orgias e até mesmo canibalismo ritual. Embora exageradas e muitas vezes fantasiosas, essas narrativas serviam para reforçar a ideia de que a heresia estava ligada ao mal absoluto, preparando o terreno para a futura associação entre bruxaria e pacto diabólico.


A Igreja e a ambiguidade da magia


Nem toda magia era condenada. A chamada magia natural, ligada ao estudo das propriedades ocultas da natureza, era em parte tolerada, sobretudo em ambientes eruditos. Roger Bacon, por exemplo, filósofo do século XIII, distinguia entre magia diabólica e natural. Enquanto a primeira era condenada, a segunda podia ser entendida como exploração legítima das forças criadas por Deus.


Essa distinção, no entanto, não impedia que praticantes populares de magia fossem alvo de suspeitas. Mulheres pobres, estrangeiros ou marginais eram os mais vulneráveis. Ainda assim, até o século XIV, as perseguições eram localizadas e de pequena escala, longe das grandes caças que viriam depois.


O medo social e os tempos de crise


As práticas mágicas ganhavam nova conotação em tempos de crise. Durante epidemias, fome ou guerras, comunidades buscavam culpados. Era comum que mulheres consideradas diferentes fossem acusadas de enfeitiçar plantações, causar doenças ou provocar desgraças. A bruxaria surgia, assim, como explicação simbólica para tragédias coletivas.


Essas acusações não partiam apenas da elite clerical: vinham também das próprias comunidades. O medo cotidiano alimentava o discurso teológico, e este, por sua vez, reforçava as suspeitas populares.


Demonologia e perseguição (séculos XIV–XV)

A transformação da visão eclesiástica


Do século XIV em diante, a bruxaria começou a ser vista sob nova ótica. Já não se tratava apenas de superstição ingênua ou desvios populares, mas de um perigo real à cristandade. Essa transformação deve ser entendida em contexto: o Ocidente vivia tempos de crises profundas — a Peste Negra (1347–1351), que matou milhões; a Guerra dos Cem Anos (1337–1453); e fomes recorrentes.


Nesses momentos de ansiedade coletiva, a Igreja e os teólogos passaram a interpretar a bruxaria como parte de uma conspiração maior, ligada ao demônio. O praticante de magia não era apenas um supersticioso: era alguém que firmava um pacto diabólico, entregando corpo e alma ao inimigo de Deus.


O sabá e o voo noturno


Foi nesse período que elementos icônicos da bruxaria moderna começaram a se consolidar: o sabá e o voo noturno. Crônicas e tratados falavam de assembleias de bruxas que se reuniam em locais ermos para adorar o diabo, praticar orgias, profanar a hóstia consagrada e conspirar contra a ordem cristã.


O voo noturno, antes tratado pelo Canon Episcopi como ilusão demoníaca, passou a ser visto como realidade. Acreditava-se que as bruxas ungiam seus corpos com unguentos mágicos e voavam em vassouras ou animais, deslocando-se para as reuniões noturnas. Esse imaginário reforçava a ideia de que a bruxaria era ameaça física e espiritual.


A consolidação da demonologia


Teólogos como Johannes Nider, autor do Formicarius (1435), foram fundamentais nessa mudança. Ele descreveu as bruxas como servas do diabo, dotadas de poderes para causar tempestades, destruir colheitas e até matar crianças. Obras como essa alimentaram a visão de que a bruxaria não era apenas superstição, mas seita organizada contra a Igreja.

Essa consolidação demonológica preparou o terreno para a grande explosão persecutória que ocorreria a partir do final do século XV.


A explosão das caças às bruxas (séculos XV–XVII)

O Malleus Maleficarum


Em 1487, os dominicanos Heinrich Kramer e Jacob Sprenger publicaram o Malleus Maleficarum (Martelo das Feiticeiras), obra que se tornaria manual de referência na caça às bruxas. O livro defendia a realidade do sabá, detalhava supostos poderes das bruxas e, sobretudo, oferecia métodos para identificar, interrogar e julgar suspeitas.

O Malleus enfatizava o papel das mulheres, vistas como mais fracas de espírito e mais inclinadas à luxúria, e, portanto, mais suscetíveis ao diabo. Essa misoginia reforçou a perseguição majoritária contra mulheres pobres, viúvas ou marginalizadas.


Tribunais e Inquisição


Embora a Inquisição tenha tido papel em alguns julgamentos, a maior parte dos processos de bruxaria ocorreu em tribunais seculares, especialmente em territórios alemães e suíços. Juízes locais, pressionados por comunidades amedrontadas, recorriam a torturas para extrair confissões, que muitas vezes confirmavam os estereótipos demonológicos.

Entre os séculos XV e XVII, calcula-se que entre 40 e 60 mil pessoas foram executadas por acusações de bruxaria na Europa, com concentração na Alemanha, Suíça, França e Escócia.


Julgamentos célebres


Alguns julgamentos se tornaram célebres pela escala das execuções:


  • Bamberg (1626–1631): mais de 900 pessoas acusadas de bruxaria foram condenadas.

  • Würzburg (1626–1631): cerca de 600 execuções.

  • Salem (1692), já no contexto americano, ilustra como o pânico coletivo podia se espalhar mesmo em comunidades distantes da Europa.


Perfil das acusadas


A maioria dos acusados eram mulheres. Estudiosas como Diane Purkiss e Ruth Mazo Karras mostram que gênero foi central na construção da bruxaria. Parteiras, curandeiras e mulheres independentes eram alvos preferenciais. O discurso demonológico reforçava estereótipos de gênero: a mulher como tentadora, luxuriosa, frágil diante do diabo.


Tortura e confissões


Os métodos de interrogatório incluíam tortura física e psicológica, o que levava muitos acusados a confessar crimes impossíveis, como voar ou manter relações sexuais com o diabo. Essas confissões forçadas alimentavam ainda mais o imaginário, criando um ciclo de acusação, medo e execução.


A visão social e cultural da bruxaria

Gênero e misoginia


Um dos aspectos centrais da perseguição à bruxaria foi o gênero. Estima-se que cerca de 75 a 85% dos acusados e executados fossem mulheres. Esse dado não é acidental, mas reflexo de uma cultura profundamente marcada pela misoginia.


Desde a patrística, pensadores cristãos viam a mulher como frágil, inclinada à luxúria e mais vulnerável à tentação do diabo. O Malleus Maleficarum reforçou essa visão, afirmando que as mulheres eram mais inclinadas à heresia por sua natureza instável e pelo desejo sexual desmedido.


A figura da bruxa encarnava, portanto, o medo masculino da mulher independente: a viúva que não dependia de marido, a parteira que dominava conhecimentos de cura, a camponesa que vivia à margem da comunidade. A perseguição funcionava, assim, como mecanismo de controle social e de reafirmação da ordem patriarcal.


Medicina popular e parteiras


Outro ponto fundamental foi o conhecimento medicinal popular. Muitas mulheres acusadas eram parteiras ou curandeiras. Elas conheciam ervas que aliviavam dores, aceleravam partos ou, em alguns casos, funcionavam como abortivos ou contraceptivos.

Para a Igreja e para autoridades médicas — dominadas por homens formados nas universidades — esse saber feminino era duplo desafio: competia com o saber acadêmico e ameaçava o controle da reprodução. Assim, práticas de cura tradicionais foram frequentemente reinterpretadas como feitiçaria.


O imaginário artístico e literário


A partir do século XV, a arte europeia começou a representar bruxas com características cada vez mais grotescas: mulheres nuas voando em vassouras, participando de sabás, cozinhando em caldeirões. Gravuras de artistas como Hans Baldung Grien fixaram no imaginário coletivo a associação entre mulher, nudez e pacto diabólico.


Na literatura, peças e crônicas reforçavam essa imagem. Shakespeare, no início do século XVII, incorporou as “três bruxas” em Macbeth, retratando-as como agentes do caos e do destino. O estereótipo que hoje associamos à bruxaria nasceu, em grande parte, dessas representações artísticas renascentistas e barrocas.


Resistência popular e permanência do oculto


Apesar da repressão, a crença em práticas mágicas não desapareceu. Em muitas comunidades rurais, curandeiras continuaram a ser procuradas; rituais de proteção, como o uso de amuletos, persistiram. A repressão não eliminou a magia popular — apenas a tornou mais perigosa e secreta.


O declínio das perseguições

O impacto do racionalismo


A partir do final do século XVII, o avanço da ciência moderna e do racionalismo começou a minar a base das caças às bruxas. Filósofos e juristas passaram a criticar a irracionalidade dos julgamentos, denunciando o uso da tortura e a fragilidade das provas.

Autores como Reginald Scot, na Inglaterra, escreveram tratados céticos sobre a bruxaria, argumentando que muitas acusações eram fruto de superstição. Aos poucos, tribunais passaram a rejeitar acusações baseadas apenas em rumores ou confissões obtidas sob tortura.


Mudanças políticas e jurídicas


A centralização do poder nos Estados modernos também contribuiu para o declínio. Monarcas passaram a ver as caças às bruxas como desordem social e buscavam racionalizar a justiça. A secularização da lei reduziu a influência direta de argumentos demonológicos.


A persistência do mito


Mesmo após o fim das perseguições em larga escala, a figura da bruxa permaneceu viva no folclore. Nas tradições populares, ela continuou a ser associada a sabedoria oculta, poderes noturnos e transgressão. Com o tempo, a imagem da bruxa foi ressignificada: de inimiga pública, tornou-se ícone cultural, muitas vezes símbolo de resistência feminina.


Conclusão


A história da bruxaria é, em grande medida, a história dos medos e ansiedades da sociedade europeia. Na Idade Média, práticas mágicas populares conviviam com a religião oficial, vistas como desvios menores ou como saberes tradicionais. Foi somente em tempos de crise que a Igreja e as elites construíram a imagem da bruxa como agente do diabo, conspiradora contra a ordem cristã.


Na Idade Moderna, essa imagem ganhou força com o Malleus Maleficarum e com a ação de tribunais seculares, resultando em dezenas de milhares de execuções. Mulheres, especialmente as que detinham saberes medicinais ou viviam à margem das normas sociais, foram as principais vítimas.


O declínio das perseguições deveu-se não à compaixão, mas ao avanço da racionalidade, ao ceticismo crescente e à consolidação dos Estados modernos. Ainda assim, o mito da bruxa sobreviveu e se transformou, chegando até nós como figura de fascínio e resistência.

Estudar a bruxaria é, portanto, compreender não apenas um episódio sombrio da história, mas também como sociedades constroem inimigos simbólicos para dar sentido às suas angústias. É desvelar como o medo, a religião e o poder se entrelaçam na produção de violência — e como, ao mesmo tempo, a memória da bruxa se converteu em símbolo de libertação e identidade.


Fontes


BALDUNG, Hans. Witches and Witchcraft in Art. Gravuras do século XVI.


BOSWELL, John. Christianity, Social Tolerance, and Homosexuality. Chicago: University of Chicago Press, 1980.


KRAMER, Heinrich; SPRENGER, Jacob. Malleus Maleficarum. 1487.


LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. Lisboa: Estampa, 1994.


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PURKISS, Diane. The Witch in History: Early Modern and Twentieth-Century Representations. London: Routledge, 1996.


RUSSELL, Jeffrey Burton. Witchcraft in the Middle Ages. Ithaca: Cornell University Press, 1972.

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