Legado e Percepção da Alta Idade Média
Conforme entendem alguns historiadores(as), a Idade Média é compreendida entre o final do século V, podendo estender-se até meados do século XV com a tomada de Constantinopla pelos Turcos-Otomanos, ou, com à chegada de Colombo ao Continente Americano, em 1493. A periodização da Idade Média é debatida até hoje em círculos acadêmicos. Por muitas vezes, caracterizamos a Alta Idade Média como sendo um período o qual um tenebroso respaldar recaiu sobre à Europa, a qual teve seu cenário preparado na Antiguidade Tardia com o ingresso dos germanos nas fronteiras do Império Romano Ocidental, e, uma Igreja que, por meio da correlação de forças e laços mantidos com o antigo Império Romano Oriental, torna-se transmissora do legado da cultura clássica romana aos domínios bárbaros, remodelando-se as suas realidades sociais. Conforme Supracitado acima, é como nos legou à tradição iluminista e muito antes, quando renascentistas primeiro empregaram o termo “Idade das Trevas”.
Em verdade, nos é evidenciado um período de formação, junções culturais e políticas entre elementos que constituirão o caráter da Idade Média em seus anos tardios, erigindo um senso de unidade Europeia unida pela efígie do cristianismo, da filosofia grega e do direito romano-eclesiástico, definindo o status quo do período através da afirmação dogmática em diversas esferas da vida. Não pode ser compreendida através da singularização interpretativa e fantástica da guerra, a despeito da ostentação das armas e simbologias militares possuindo grande presença. Do século V ao VI, fora presente uma dualidade entre a cultura erudita-latina e o direito consuetudinário trazido pelos germanos tardios. Hoje, compreendemos os códigos jurídicos e leis editadas como tentativas para moldar o caráter destes povos, vemos que, especialmente durante o século VI e VII, foi um período em que com grande rapidez à força das aristocracias desmontava o quimérico intento clerical de moldar um estado, e o estado por si só.
Ao passo que o mesmo clero alterou as relações de convivência entre estes, produzindo noções de hospitalidade, uma aproximação com à morte, fatídico momento da vida repudiado pelas culturas bárbaras. É possível, também, observar às instâncias da vida privada do alto medievo nas relações de gênero. Ora, em uma cultura onde à participação feminina fora vetada ao papel de possessoras de dotes, constituidoras de alianças e penas extremamente punitivas para com a infidelidade. Em um contexto em que a ideologia teológica de “casamento cristão” não fora bem constituída, estas uniam famílias e consigo, simbolizavam e carregavam os dotes passados entre as aristocracias, costume muito comum entre os Visigodos da Península Ibérica.
Para alguns historiadores, o feudalismo foi um advento responsável por amainar à violência senhorial da Alta Idade Média, podendo ser encarado por outros como uma “razão civilizatória”, junto da Paz de Deus no século X, impondo uma cultura cristã por meio de relíquias, reduzindo crises famélicas, a violência social e penalizando a felonia e o perjúrio, tão comuns aos senhores germanos em certos períodos da Alta Idade Média. Para que possamos compreender o éter (essência) dos(as) personagens que moldaram o cenário social e político da Alta Idade Média, é necessário que analisemos e estudemos suas vidas privadas nas instâncias que remontam à mentalidade, estruturas políticas e valores sociais. É evidente o caráter marcial e belicoso desta sociedade que se moldou após a instabilidade social induzida pelo findado Império Romano Ocidental em 476, que ao longo de séculos precedentes ao fatídico dia 4 de setembro, incorporou e absorveu elementos institucionalizados pelo Império, elaborando com originalidade suas novas instituições a partir de suas próprias alçadas culturais.
Que Era a Terra (Rés Pública) durante o Alto Medievo?
Assim nos diz Michel Rouche em “História da Vida Privada, Do Império Romano ao Ano Mil”.
“Por mais que tentem imitar o Império Romano, no plano tanto das instituições políticas como das estruturas sociais, os visigodos, burgúndios ou francos – não o conseguem. Por toda parte, da corte ao último funcionário, passando pelos grupos profissionais e religiosos, da cidade ao campo, pessoas privadas e espaços privados aparecem em primeiro lugar. Até a riqueza se torna assunto privado, e o indivíduo procura privatizar tudo, a casa e a mesa.”
(ROUCHE, 2009, pg. 408).
Ora, afinal, que entendiam esses homens sobre o direito público? Para tal compreensão, pensemos nas instituições romanas do império tardio. O Império Romano, através de Cícero, desenvolveu o conceito de “bem público” e “coisa pública”. À compreensão deste conceito para os reis merovíngios do século VI proveio de uma adaptação genuína da realidade a qual viviam. Para os Romanos, era condição sine qua non que o vínculo sanguíneo de um homem prestigiado e respeitável estivesse ligado a terra, para que assim, pudesse inserir-se na vida política. Estar ligado a terra era sinônimo de que um indivíduo remontava as mais antigas famílias romanas, desse modo, seu vínculo com a política da Civitas já se estabelecera há muito, remontando, talvez, à própria fundação de Roma.
Para os germanos, a terra já comportava diferente valor social, e era compreendida como um bem tão móvel quanto o gado, o “estado” não comportava as mesmas proporções e complexidades institucionais e jurídicas qual como os romanos. Vejamos um pouco sobre às relações de poder na Germânia. “Nestas tribos em que o poder, ao mesmo tempo de origem mágica, divina e guerreira é exercido pelo rei, chefe da tribo eleito, e pelos guerreiros livres “(P. 409). Podemos nos aprofundar ainda com a figura do líder “O mais forte constitui o que se deve chamar de “Estado” de um tipo novo, espécie de comunidade de pessoas militares sem domicílio fixo nem duração garantida.” (ROUCHE, 2009, pg.409).
Animais de criação, tesouros, armas e prestígio são as recompensas e bens que garantem a riqueza e eclipsam o indivíduo que goza de grande participação. Enquanto o Chefe da tribo garante vitórias militares, conquistas e reparte o butim entre os seus, estará garantida a integridade da tribo. Assim são os germanos do ano 100, posteriormente, vemos nas tribos que sofreram com determinada romanização nas suas fileiras militares, ao exemplo dos Cautos, Alamanos e Francos, que em seus leitos de morte, eram enterrados portando suas armas, equipamentos, símbolos que lhes patenteavam como oficiais militares do Império Romano e até mesmo, cavalos! Mesclavam as esferas de sua vida pública e privada, seus bens, mobiliários e insígnias de distinção, carregavam todos os seus atributos mundanos para o túmulo, para que isso os dignifique.
Para os Reis da Gália Merovíngia, que entendiam o conceito de terras e posse a partir de um sincretismo entre à repartição materna entre os herdeiros, de raiz romana, e o conceito de bem privado, ligado às culturas germânicas. À terra, seus reinos, eram nada mais nada menos que bens a serem repartidos entre seus descendentes, tratavam à terra como um verdadeiro butim territorial. Ou seja, a morte do rei era sucedida pela repartição de seu território aos seus descendentes, à terra era fendida, e não passada ao seu primogênito, como será institucionalizado no feudalismo. Para fins de esclarecimento, é essencial entendermos que a riqueza privada aqui falada não é legitimada através de um aparelho jurídico, não se refere a outra característica além do bem pessoal, a riqueza pessoal, o deve em repassar à parte do butim aos seus convivas recaía ao Chefe da tribo.
É válido lembrar que tais eventos foram razão de incontáveis guerras entre famílias senhorias, hostes armadas juramentadas e ligadas aos senhores da Gália, provocando o surgimento de diversas regiões autônomas, como à Borgonha, Aquitânia, Provença e Bretanha. Tiremos como exemplo Carlos Magno, que após o misterioso assassinato de seu irmão, Carlomano, herdou à outra metade do Reino Franco. Ou no Tratado de Verdun em 843, que repartiu o Império Carolíngio entre os filhos de Luís, o Piedoso. Unificado através da Guerra e Repartição, Carlos Magno distribuiu títulos e cargos palatinos aos seus vassalos, sabemos que os guerreiros criados nos palácios carolíngios, que portavam seus estandartes em batalha, foram essenciais para a manutenção do domínio da terra.
O Ensino Beligerante
Ao jovem romano nascido em família patrícia, sua educação direcionava-se a prepará-lo ao exercício e ofício do cargo público. Com preceptores, nos ginásios e palestras, aprendia a língua e literatura grega através de intelectuais vindos da própria Grécia. Enfatizava-se o aprendizado da oratória e retórica, qualidades essenciais e necessárias aos ofícios ligados aos cargos públicos. O jovem romano, podendo ser apadrinhado por cônsules, seria um grande facilitador para a iniciação de sua vida pública.
“Durante esse tempo, os meninos estudam. Para se tornarem bons cidadãos? Para aprender seu futuro ofício? Para adquirir os meios de compreender alguma coisa do mundo em que vivem? Não, mas para adornar o espírito, para se instruírem nas belas letras. Constitui estranho erro acreditar que a instituição escolar se explica, através dos séculos, pela função de formar o homem ou, ao contrário, adaptá-lo à sociedade; em Roma não se ensinavam matérias formadoras nem utilitárias, e sim prestigiosas e, acima de tudo, a retórica.”
(VEYNE, 2009, pg.31).
Não obstante, na Alta Idade Média, uma ideologia social e mentalidade acoplavase a realidade, de modo que a “educação” idealizava a salvaguarda da parentela, e a capacidade de matar era essencial para a sobrevivência onde a violência era prática rotineira e compreendida, conforme nos diz Gregório de Tours, “Nessa época cometeram-se muitos crimes”, com relação ao ano de 585, e também nos diz o biógrafo de são Léger referindo-se ao ano de 675, “cada qual via a justiça em sua própria vontade”.
Se a maioridade romana era entendida após a primeira relação sexual do menino, possuíam os Francos da Gália a barbatória, cerimônia seguida pelo primeiro barbear do rapaz, o crescimento de pelos faciais indicam que estaria pronto para a agressividade. E mesmo antes do cabalístico momento, treinavam com o arco, arremesso de armas, montavam a cavalo e manejavam à espada. Passado o período em que o rapaz constituía sua vitalidade e Fortitude através do preparo e treino com as armas e caçadas, este ajoelhava-se e prontificavase para a cerimônia do adubamento. O rapaz era golpeado no ombro por seu pai de sangue ou adotivo, testando sua resistência e força, para então, receber sua própria espada. Vínculos com a espada e o palafrém (cavalo de guerra) eram estabelecidos pela perenidade, afinal, possuí-los representava a inserção do homem na vida política, nas atividades belicosas e militares. Estava pronto para guerrear e proteger sua parentela, para vingá-la e honrar seu nome.
“E às vezes são tão fortes que em 793, durante um ataque muçulmano contra Conques, um jovem aristocrata aquitano, Datus, preferiu conservar sua montaria a trocá-la por sua mãe prisioneira. E os inimigos arrancaram os seios desta, depois lhe cortaram a cabeça sob os lhos do filho, horrorizado um pouco tarde demais.”
(ROUCHE, 2009, pg.475).
Tributação
Podemos estender a impossibilidade de compreensão da Res Pública para a arrecadação de tributos, principal mecanismo pelo qual muitas vezes estes senhores estruturavam seus domínios. Afinal, traziam na sua alçada cultural o conceito de riqueza privada e pessoal. Para o clero do século XIII, o conceito de bem público estendeu-se para a circunscrição e atividade dos mercadores, contrapondo na prática a noção de usura compreendida pela teologia cristã. Mas, para este senhorio do alto medievo, o fisco, tributo arrecadado por um monarca e seus vassalos, era nada mais nada menos que seu próprio tributo, sem que houvesse categorização conceitual de “coroa”, ou um órgão público.
O fisco, portanto, era o próprio tesouro real, as riquezas e finanças do rei, que acabavam por constituir seu tesouro privado. (Fisco, substituir por obrigações, cobrança sobre propriedades, terras, produções e vinculado à Roma, cobrança de obrigações, e estas obrigações constituíam o tesouro da família, não estatal). Carlos Martel, figura conhecida por protagonizar a derrota dos mouros na Batalha de Poitiers em 732, encarregava-se do cargo de Mordomo do Palácio, polêmico título das cortes merovíngias, isto é, administrava as propriedades régias; facilitando assim seu golpe na família merovíngia reinante em 751, tendo consanguinidade, e sendo capaz de liderar grupos que venceram muçulmanos, possuindo respaldo, pôs em dúvida e contestação quem detinha o real poder nas cortes palatinas.
Fonte - BARTHÉLEMY, Dominique, A Cavalaria: da Germânia antiga à França do século XII. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010.
Veyne, Paul, História da Vida Privada- Vol. 1: Do império Romano ao ano mil. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2009.
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