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Olga de Kiev

Atualizado: 10 de nov.


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No coração do século X, quando a Europa cristã ainda se fragmentava entre principados, impérios e feudos, uma mulher do norte impôs sua vontade sobre as margens do Dniepre: Olga de Kiev, soberana da nascente Rus’ de Kiev.Seu nome atravessou a história envolto em paradoxos — venerada como santa no cristianismo oriental e temida como vingadora cruel nos relatos das crônicas. A mesma mulher que mandou incinerar seus inimigos com aves em chamas foi a primeira princesa da Rus’ a abraçar o cristianismo, preparando o caminho para a conversão de seu neto, Vladimir, o Santo.


Olga é uma das figuras mais fascinantes da Idade Média eslava. Governou entre aproximadamente 945 e 960, como regente do jovem príncipe Sviatoslav I, após o assassinato de seu marido, o príncipe Ígor Rúrikovitch. Em meio a um mundo ainda dominado por tradições tribais e ritos pagãos, Olga impôs ordem e ampliou a autoridade de Kiev, transformando o trauma da viuvez em uma demonstração exemplar de poder político.


Como observa Irina Sherman em Grand Princess Olga: Pagan Vengeance and Sainthood in Kievan Rus (2010), “ela se tornou o espelho de uma transição: o tempo em que a justiça tribal cedia lugar à administração estatal, e o paganismo se via desafiado pela cruz bizantina.”


Este artigo investiga, a partir das fontes primárias e dos estudos historiográficos recentes, o itinerário de Olga: suas origens, o contexto da Rus’ de Kiev, a vingança contra os dřevlianos, as reformas administrativas, sua conversão ao cristianismo e sua canonização. A figura que emerge não é a de uma lenda isolada, mas de uma soberana estrategista, símbolo do encontro entre o Norte pagão e a ortodoxia bizantina.


Origens e contexto político da Rus’ de Kiev


O cenário em que Olga surgiu é o da Rus’ de Kiev, um Estado pluriétnico que se formou entre os séculos IX e X, unindo tribos eslavas orientais, fino-úgricas e escandinavas.Segundo a Crônica Primária (também conhecida como Crônica de Nestor), compilada por monges de Kiev por volta de 1113, a dinastia que fundou a Rus’ teria origem escandinava — os varegos ou rúrikidas, descendentes do príncipe Rúrik, senhor de Novgorod. Após sua morte, o poder teria passado a seu parente Oleg, e depois a Ígor Rúrikovitch, marido de Olga.


A historicidade dessa origem varega foi longamente debatida. O medievalista Omeljan Pritsak, em seu estudo clássico The Origin of Rus’ (Harvard Ukrainian Research Institute, 1981), argumenta que a elite dirigente era realmente escandinava, mas rapidamente assimilada à cultura eslava e cristã oriental. Kiev, então um importante entreposto comercial, transformou-se em centro político e econômico entre o Báltico e o mar Negro.

Nesse mosaico de povos e crenças, o poder dependia da habilidade de impor tributos e fidelidade. O príncipe governava com uma comitiva guerreira — a druzhina — e percorria as tribos vassalas para coletar o poliúd’e, espécie de tributo itinerante. Foi nesse sistema que a história de Olga se insere.


A figura de Olga antes de 945


As fontes são silenciosas sobre a infância de Olga. A Crônica Primária menciona que teria nascido “em Pskov” por volta de 890 ou 905 (diferença comum nas genealogias medievais). Não há certeza sobre sua origem étnica: poderia ser eslava oriental ou varega.Seu nome, derivado do nórdico antigo Helga (“sagrada”), indica laços com os varegos escandinavos que dominavam a região do lago Ilmen e do Dniepre.

Casou-se com Ígor I de Kiev ainda jovem, provavelmente entre 903 e 907. Ígor, sucessor de Oleg, prosseguiu a política de expansão e arrecadação de tributos nas tribos subordinadas. Dessa união nasceu Sviatoslav I, que herdaria o trono após o assassinato do pai em 945.


Os estudiosos como Jean-Pierre Arrignon (La Russie médiévale, 1991) e Brzozowska (Saint Olga, 2014) destacam que Olga já desempenhava papel administrativo antes da morte do marido, acompanhando expedições e gerindo a coleta de tributos. Essa familiaridade com a burocracia e com as alianças tribais explicará sua eficiência como regente.


O assassinato de Ígor I e a insurreição dos dřevlianos


Em 945, Ígor partiu para a região dos dřevlianos, uma confederação tribal situada entre os rios Pripiat e Dniepre, que resistia ao pagamento de tributos. Após cobrar pesadamente e retornar a Kiev, o príncipe decidiu voltar para exigir ainda mais — um erro fatal.A Crônica Primária narra que os dřevlianos, indignados, o capturaram e o mataram “amarrando-lhe os pés a duas árvores dobradas, que, ao serem soltas, despedaçaram o corpo do príncipe”.


Essa morte brutal criou um vácuo de poder. O trono de Kiev passou para Sviatoslav, ainda criança, e a viúva Olga assumiu a regência. O episódio inauguraria uma das narrativas mais marcantes da história medieval: a vingança de Olga.


Irina Sherman (2010) observa que a Crônica Primária mistura memória política e simbolismo moral. A vingança da viúva não é simples relato de barbárie: é um ritual político destinado a reafirmar a ordem e restaurar a autoridade real. Olga, ao punir os assassinos do marido, redefine os contornos da justiça — do clã para o Estado.


As etapas da vingança


A sequência de punições descrita pela Crônica Primária é quase literária:


  1. Primeira embaixada: os dřevlianos enviam vinte emissários a Kiev para propor que Olga se case com seu príncipe Mal. Ela ordena que sejam enterrados vivos em uma vala.


  2. Segunda embaixada: um novo grupo de emissários é queimado dentro de um banho de vapor.


  3. Terceira etapa: Olga viaja até Iskorosten (atual Korosten, na Ucrânia), finge aceitar o tributo e, durante o banquete fúnebre de Ígor, manda matar os convivas embriagados.


  4. Quarta vingança: ordena um cerco à cidade e exige “três pombos e três pardais de cada casa”; amarra enxofre e estopa a cada ave e as solta, incendiando a cidade inteira.


Mesmo que parte dessas narrativas seja hiperbólica, elas expressam o programa político de centralização da regente.Brzozowska (2014) enfatiza que a Crônica usa a retórica bíblica da “justiça de Deus” — a viúva punindo o mal — para justificar a legitimidade de Olga. Ela não age por paixão, mas por princípio: “o sangue derramado de Ígor exige purificação.”


Omeljan Pritsak (1987) interpreta o episódio do fogo em Iskorosten como memória ritual da transição entre a vingança tribal e o castigo estatal. Olga substitui o ciclo infinito da vingança por um ato simbólico de soberania.


Olga como regente: consolidação e ordem


Após subjugar os dřevlianos, Olga iniciou um período de reorganização interna. Entre 946 e 960, governou a Rus’ com eficiência impressionante. A Crônica Primária registra que ela “estabeleceu postos de tributo (pogosty) e locais de armazenamento (stan)”, criando uma estrutura fiscal estável — precursora da administração territorial russa posterior.

Essas reformas substituíram o antigo sistema itinerante de coleta (poliúd’e) por um modelo fixo: cada região tinha seu centro de arrecadação, onde tributos eram pagos regularmente. Tal inovação reduzia revoltas e consolidava a presença permanente da autoridade principesca.


Segundo Brzozowska (2014), esse foi o início da “institucionalização da Rus’”, um passo decisivo rumo à formação de um Estado. Olga demonstrou não apenas ferocidade, mas racionalidade administrativa. Ao lado de oficiais e mercadores, ela centralizou o comércio, impôs padrões de pesos e medidas e restaurou o controle sobre rotas de caravanas até o mar Negro.


Jean-Pierre Arrignon (1991) observa que sua regência “transformou a viúva vingadora em soberana diplomata”. Enquanto seu filho Sviatoslav se educava na arte da guerra, ela mantinha a paz interna e abria canais diplomáticos com Bizâncio.


A imagem da soberana e o poder feminino


A presença de uma mulher governando a Rus’ de Kiev causa espanto nas crônicas, mas não era inteiramente inédita. Povos eslavos e escandinavos reconheciam, em contextos específicos, o poder de viúvas regentes. Contudo, o caso de Olga foi singular por sua longevidade e eficácia.Em termos simbólicos, ela representava tanto a mãe quanto o vingador. Sherman (2010) a define como “figura de limiar”: mediadora entre mundos, entre o caos tribal e a ordem cristã nascente, entre o sangue e o batismo.


A política de Olga também é marcada por uma racionalidade quase moderna: não há menção a novos massacres depois de Iskorosten; ela busca estabilidade e consolidação. É possível ver aqui o início de uma diplomacia kievana que, mais tarde, floresceria sob Vladimir I.


O primeiro período do governo de Olga — de 945 a 960 — pode ser entendido como fase de centralização e sacralização do poder régio. Da tragédia de Ígor nasce a ordem da Rus’; da viúva, a regente; da vingança, o Estado. Ao transformar o caos tribal em organização fiscal e ao firmar sua autoridade sobre territórios e clãs, Olga lançou as bases daquilo que se tornaria o primeiro Estado eslavo oriental estável.


A conversão ao cristianismo e as relações com Bizâncio


Entre 954 e 957, Olga viajou a Constantinopla, a capital do Império Bizantino — evento que transformaria profundamente sua trajetória política e espiritual.A Crônica Primária relata a visita de modo quase hagiográfico: a princesa foi recebida com honras pelo imperador Constantino VII Porfirogênito, converteu-se ao cristianismo e recebeu o batismo com o nome de Helena (Elena), em homenagem à mãe de Constantino Magno.


O imperador teria ficado impressionado com sua inteligência e beleza, chegando, segundo o relato, a propor casamento. Olga respondeu com sagacidade: pediu para ser batizada primeiro; ao fazê-lo, Constantino tornou-se seu padrinho espiritual, o que tornaria o matrimônio incestuoso — um gesto diplomático e espirituoso que a Crônica descreve como triunfo feminino sobre o poder imperial.


Historicamente, a história é duvidosa. Omeljan Pritsak (1987) e Francis Dvornik (1956) confirmam a existência da missão diplomática de Kiev em meados da década 950, mas situam o batismo possivelmente em Kiev, e não em Constantinopla. Mesmo assim, o contato com Bizâncio é inegável: a princesa buscava legitimidade internacional e acesso ao universo cultural e religioso bizantino.


O significado do batismo


A conversão de Olga teve importância simbólica imensa. Ela foi a primeira governante da Rus’ a adotar oficialmente o cristianismo — quase quarenta anos antes de seu neto Vladimir I tornar a fé bizantina religião de Estado.


Para Zofia Brzozowska (2014), o batismo de Olga representa “a abertura espiritual e política da Rus’ de Kiev para o mundo cristão mediterrâneo”. O cristianismo oferecia não apenas uma crença, mas um sistema de legitimação monárquica: o soberano ungido como instrumento de Deus.


Olga compreendeu que, para consolidar a autoridade de Kiev e integrar a Rus’ ao concerto das potências europeias, era preciso adotar o modelo imperial bizantino, no qual trono e altar se sustentavam mutuamente.


O nome cristão Helena não é acidental. Segundo Pritsak (1987), ele remete à imperatriz Helena, mãe de Constantino Magno, que descobriu a cruz de Cristo — um paralelo simbólico com a função missionária que Olga viria a desempenhar: precursora da conversão da Rus’.


A nova fé não a afastou de sua astúcia política. Olga manteve relações equilibradas com Bizâncio e resistiu à total subordinação ao império, recusando-se a enviar tributo ou tropas em determinadas campanhas. Sua conversão foi, ao mesmo tempo, ato de fé e gesto diplomático.


A missão à Germânia e a recusa de Roma


O batismo de Olga gerou novas possibilidades diplomáticas. Por volta de 959, ela enviou uma embaixada ao imperador Otão I, do Sacro Império Romano-Germânico, solicitando missionários cristãos. A crônica de Widukind de Corvey (c. 970) relata o envio do bispo Adalberto de Magdeburgo, que, porém, não encontrou receptividade em Kiev.


Esse episódio demonstra o caráter independente da fé de Olga: ela não pretendia submeter-se à jurisdição romana nem afastar-se do eixo bizantino, mas testar as possibilidades de equilíbrio entre Oriente e Ocidente.Como nota Christian Rapp (Olga von Kiew, 2020), “sua escolha espiritual tornou-se escolha geopolítica: ela abriu a porta à cristandade, mas manteve a chave em Kiev”.


Paganismo e cristianização interna


Apesar da conversão pessoal de Olga, a sociedade kievana permaneceu predominantemente pagã. O filho e herdeiro, Sviatoslav I, rejeitou o cristianismo da mãe e continuou a venerar os deuses eslavos — Perun, Dazhbog e outros.A Crônica Primária preserva o diálogo simbólico entre mãe e filho:

“Ela o persuadiu com palavras doces, mas ele não quis ouvir, dizendo: ‘Como posso adorar um Deus estranho enquanto meus guerreiros zombam de mim?’”

Essa recusa reflete o choque cultural da época. Sviatoslav, guerreiro de mentalidade varega, via a fé cristã como fraqueza; Olga, governante pragmática, percebia nela o futuro da política e da cultura.


Durante os anos 960, ela permaneceu influente como matriarca e conselheira, mantendo pequenos grupos de cristãos em Kiev. Pritsak (1987) sugere que Olga tenha fundado uma igreja dedicada a Santa Sofia, antecessora da grande catedral que Vladimir ergueria no século seguinte.


A iconografia da conversão


Na arte bizantina e eslava, Olga é representada com a cruz e o véu de viúva, às vezes portando uma miniatura de igreja. Essa iconografia, analisada por Brzozowska (2014), simboliza a união de dois papéis: a soberana política e a apóstola espiritual.Sua conversão não é descrita como arrependimento, mas como iluminação: o instante em que a astúcia se transfigura em sabedoria divina.


Olga entre o paganismo e a fé — política e espiritualidade na regência final


As reformas administrativas e o modelo cristão de governo

Após o batismo, Olga continuou a reger Kiev até que Sviatoslav alcançasse maturidade, por volta de 960. As fontes apontam que ela introduziu elementos da administração bizantina — incluindo normas fiscais fixas, selos oficiais e jurisdição mais organizada. Jean-Pierre Arrignon (1991) descreve seu governo como “um laboratório de sincretismo”, onde coexistiam ritos pagãos e práticas cristãs. O sistema de pogosty (postos de coleta de tributo) criado por Olga consolidou a presença estatal e o poder do príncipe.

Nessas reformas, percebe-se a influência do modelo bizantino: o monarca como defensor da fé e guardião da ordem. Olga adaptou o conceito de basileia à realidade eslava, transformando o governante em mediador entre Deus e o povo.


A tensão com Sviatoslav e o fim da regência


Com a maioridade de Sviatoslav, por volta de 960-962, Olga retirou-se parcialmente da política ativa. O filho assumiu o trono e lançou-se em campanhas militares contra búlgaros, cazares e pechenegues, buscando expandir as fronteiras da Rus’.Sviatoslav representava o retorno à tradição guerreira e pagã, enquanto Olga simbolizava a nova ordem espiritual. Mesmo assim, segundo a Crônica Primária, ele respeitava a mãe e permitia-lhe liberdade religiosa:

“Ele não acreditou, mas não impediu que outros fossem batizados.”

Essa tolerância assegurou a sobrevivência da comunidade cristã que Olga havia fundado. Quando a peste eclodiu em Kiev, ela acolheu os doentes e cuidou deles — fato que, segundo as crônicas hagiográficas, reforçou sua reputação de santidade.


A morte e o culto


Olga morreu em 11 de julho de 969, em Kiev, e foi sepultada segundo o rito cristão — uma raridade em uma corte ainda pagã.Décadas depois, durante o reinado de Vladimir I, seu corpo foi transladado para a recém-construída Igreja da Dormição (Santa Sofia) e colocado em um sarcófago de pedra, símbolo da união entre linhagem dinástica e fé.

A Igreja Ortodoxa rapidamente reconheceu seu papel precursor. No século XI, Olga foi canonizada como “Igual aos Apóstolos” (Isapostolos), título reservado a figuras missionárias como Constantino e Helena.Segundo o Sinaxário de Kiev, “Deus iluminou a Rus’ por meio de Olga, como a aurora que precede o sol de Vladimir.”


O legado espiritual e político


Olga de Kiev inaugurou uma nova concepção de poder feminino e régio na Europa oriental. Enquanto a maioria das soberanas medievais atuava por mediação conjugal, ela governou diretamente, reformou o sistema tributário, administrou justiça e definiu política externa.Sua conversão, longe de gesto passivo, foi estratégia consciente de inserção no universo cristão, sem romper totalmente com a tradição varega.


Irina Sherman (2010) resume essa dualidade:

“Olga de Kiev é a personificação da fronteira — entre a violência do mito e a fé da história.”

A partir de sua morte, o cristianismo se expandiu silenciosamente em Kiev, sustentado pela memória de sua rainha santa. O neto, Vladimir, batizará o povo inteiro em 988, cumprindo o destino que ela pressentira.


A segunda metade do governo de Olga mostra o nascimento do cristianismo russo como projeto político. Ela entendeu o poder da fé como instrumento de unidade, e usou o batismo não apenas para salvar a alma, mas para construir o Estado.Entre a espada e a cruz, Olga abriu a ponte que ligou a Rus’ à cristandade, tornando-se símbolo de uma transição civilizacional.


O culto de Santa Olga e a memória na tradição ortodoxa


A canonização de Olga ocorreu entre os séculos XI e XII, quando a Igreja Ortodoxa consolidava sua identidade após a cristianização da Rus’. Ela foi declarada “Igual aos Apóstolos” (Isapostolos), título reservado a figuras missionárias e fundadoras da fé.

Segundo o Sinaxário de Kiev, compilado entre 1037 e 1050, “Olga trouxe a luz da fé como a aurora que precede o sol de Cristo”. Essa metáfora — a aurora antes do dia — define sua posição histórica: precursora do batismo de seu neto Vladimir I em 988.


Francis Dvornik (Byzantine Missions among the Slavs, 1956) explica que o culto de Olga foi parte da política religiosa de Vladimir e Yaroslav, os primeiros grandes príncipes cristãos. A santificação da ancestral legitimava a nova fé e reforçava a continuidade dinástica: se Vladimir era o novo Constantino, Olga era sua Helena.


A elaboração hagiográfica


A primeira Vita Olgae (Vida de Olga) foi escrita por monges de Kiev entre 1010 e 1030. Ela combina episódios históricos — a viagem a Constantinopla, o batismo, a morte — com elementos simbólicos: a luz que emana de sua sepultura, o corpo incorrupto, a sabedoria divina.


Zofia Brzozowska (2014) observa que essa narrativa segue o modelo bizantino de santidade feminina, no qual a rainha se converte em “mãe espiritual do povo”. A hagiografia silencia os aspectos de violência, mas conserva traços de astúcia e inteligência — virtudes transformadas em dons do Espírito.


O próprio nome “Helena”, recebido no batismo, facilitou essa identificação: a nova Santa Helena do norte, descobridora não da Cruz, mas da fé que uniria o mundo eslavo à ortodoxia.


A liturgia e o calendário


O culto de Santa Olga espalhou-se rapidamente. O Menaion bizantino (calendário litúrgico) registra sua festa em 11 de julho, data de sua morte. Ícones e relíquias circularam entre Kiev, Novgorod e Pskov. O imperador bizantino Basílio II chegou a incluir seu nome em listas oficiais de santos eslavos enviadas a Roma, como gesto diplomático antes do cisma de 1054.


As descrições das cerimônias em sua honra, recolhidas por Franklin e Shepard (The Emergence of Rus, 1996), mostram procissões noturnas com cruzes e cânticos dedicados à “Santa Avó da Fé”. A memória de Olga funcionava como elo genealógico e espiritual entre o paganismo vencido e o novo mundo cristão.


O corpo incorrupto e o poder simbólico


As crônicas afirmam que, ao abrir-se o túmulo de Olga no século XI, seu corpo estava incorrupto — sinal de santidade. Obolensky (The Byzantine Commonwealth, 1994) interpreta esse episódio como metáfora política: “o corpo incorrupto da santa representava a incorruptibilidade do Estado cristão nascente”.


Relíquias atribuídas a Olga circularam durante séculos, especialmente em Pskov, sua cidade natal, e em Kiev. Após a invasão mongol de 1240, parte dessas relíquias foi transferida para Novgorod, onde permaneceram até o século XVI. A santidade de Olga, portanto, sobreviveu à destruição de Kiev — símbolo da continuidade espiritual do povo russo.


Iconografia e representação


Na iconografia ortodoxa, Olga aparece com véu branco, coroa e cruz nas mãos, frequentemente ao lado de seu neto Vladimir. As cores predominantes são o azul e o dourado, representando pureza e sabedoria divina.


Brzozowska (2014) nota que essa representação cria um contraste intencional: a mulher que outrora queimara uma cidade com pombos incendiários é agora retratada com aves brancas pousadas sobre a cruz — metáfora de reconciliação.


O poder feminino e o legado cultural de Olga de Kiev


O reinado de Olga é singular por ocorrer em uma sociedade dominada pela guerra e pelo comércio. A cultura política da Rus’ valorizava a força militar e a linhagem, mas permitia que viúvas de príncipes governassem enquanto os herdeiros eram menores.

Ainda assim, nenhuma exerceu autoridade tão duradoura e eficaz. Olga é comparável, em dimensão histórica, a Irene de Bizâncio (século VIII) e a Isabel I de Castela (século XV). Em comum, todas usaram a legitimidade dinástica para impor reformas e decisões próprias.


Irina Sherman (2010) argumenta que a força de Olga residia na “capacidade de traduzir o código masculino da guerra no código feminino da administração”. Ela substituiu o terror tribal pela ordem fiscal, a vingança pela lei.


O arquétipo da rainha sábia


A imagem de Olga evoluiu ao longo dos séculos. Nos séculos XI-XII, ela simbolizava a fé; no XIV, a justiça; no XIX, a maternidade nacional. Escritores como Nikolai Karamzin e Sergei Soloviov a retrataram como fundadora moral da Rússia, “a mulher que compreendeu o poder da sabedoria sobre a espada”.


Durante o período soviético, sua figura foi reinterpretada como governante pragmática, precursora do Estado centralizado. Historiadores marxistas, como Boris Grekov, a viram como representante da transição entre comunas tribais e Estado feudal.


Após a independência ucraniana, Olga foi incorporada ao panteão nacional como símbolo da identidade de Kyiv: uma soberana que uniu poder e fé sem perder autonomia. Em 2003, o governo da Ucrânia emitiu uma moeda comemorativa com seu retrato e a inscrição Свята Ольга — Світло Русі (“Santa Olga — Luz da Rus’”).


A mulher e o mito


O contraste entre a Olga vingadora e a Olga santa não é contradição, mas narrativa complementar. Brzozowska (2014) interpreta essa dualidade como metanoia histórica: a conversão não nega o passado, mas o redime. A violência torna-se símbolo de justiça, e a política, expressão da providência.


Para Pritsak (1987), o mito de Olga é parte da fundação da memória nacional russa e ucraniana: “Toda cultura precisa de um princípio feminino que civilize o ato de conquista”. Olga é esse princípio — a força que transforma a vingança em lei, o poder em fé.


O legado espiritual na Europa Oriental


A influência de Olga transcendeu fronteiras. Igrejas dedicadas a ela foram erguidas em Constantinopla, Pskov, Kiev, Veliky Novgorod, Vilnius e Moscou. Sua figura é venerada não apenas na ortodoxia russa, mas também na Igreja Grega, Búlgara e Sérvia.Em 1988, durante o milênio do batismo da Rus’, o Patriarcado de Moscou renovou seu culto, proclamando-a “matriarca espiritual dos povos eslavos”.


A iconografia moderna a retrata ao lado de São Vladimir e Santa Nina da Geórgia, compondo uma tríade de apóstolos eslavos. Christian Rapp (2020) destaca que essa associação reforça o papel feminino na evangelização do leste europeu, frequentemente eclipsado por narrativas masculinas.


Olga e o imaginário político contemporâneo


Na Rússia e na Ucrânia contemporâneas, Olga é evocada por razões distintas. Para a Igreja Ortodoxa Russa, ela simboliza a unidade espiritual da “Santa Rus’”. Para os ucranianos, é expressão da soberania originária de Kyiv e da autonomia em relação a Moscou.


Essa disputa pela memória mostra que Olga permanece viva como símbolo identitário. Sua figura histórica tornou-se linguagem política: a santa que cada nação reivindica como sua fundadora moral.


Conclusão


Olga de Kiev viveu em um mundo de transição — entre o paganismo nórdico e o cristianismo bizantino, entre o clã e o Estado, entre a vingança e a justiça. Sua vida é parábola do nascimento da civilização eslava oriental: um processo violento, mas guiado pela razão política e pela fé.


Ao vingar o marido, impôs respeito; ao converter-se, impôs sentido. A mesma mulher que incendiou cidades edificou igrejas; a que derramou sangue, gerou fé. Sua trajetória comprova que o poder feminino, mesmo em sociedades guerreiras, podia moldar impérios.

Como escreveu Irina Sherman (2010):

“Olga foi a chama que purificou o ferro. Sem ela, a Rus’ teria permanecido apenas uma horda; com ela, tornou-se um reino.”

A história de Olga é, portanto, a história da aurora espiritual do Oriente europeu — a primeira luz antes do sol de Vladimir e da cúpula dourada de Kiev.

Fontes


Cross, Samuel Hazzard. "The Russian Primary Chronicle: Laurentian Text." Olgerd P. Sherbowitz-Wetzor (Editor, Translator)


The Editors of Encyclopaedia Britannica, "St. Olga,


Jonathan Shepard, "The Origins of Rus' (c.900–1015)


BRZOZOWSKA, Zofia. Saint Olga – Princess of Kievan Rus’. An Anthology of Sources. Łódź: Wydawnictwo Uniwersytetu Łódzkiego, 2014.


DVORNIK, Francis. Byzantine Missions among the Slavs. New Brunswick: Rutgers University Press, 1956.


FRANKLIN, Simon; SHEPARD, Jonathan. The Emergence of Rus 750–1200. London: Longman, 1996.


OBOLENSKY, Dimitri. The Byzantine Commonwealth: Eastern Europe, 500–1453. London: Praeger, 1994.


PRITSAK, Omeljan. When and Where was Ol’ga Baptized? Cambridge (MA): Harvard Ukrainian Research Institute, 1987.


RAPP, Christian. Olga von Kiew: Herrscherin, Heilige, Mythos. Wien: Böhlau Verlag, 2020.


SHERMAN, Irina. “Grand Princess Olga: Pagan Vengeance and Sainthood in Kievan Rus.” World History Connected, v. 7, n. 1, 2010.

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