A BATALHA DE HASTINGS: EM DETALHES
- História Medieval
- há 2 dias
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A aurora de 14 de outubro de 1066 marcou mais que o início de uma batalha: foi o nascimento de uma nova Inglaterra. Nas colinas de Senlac Hill, próximas à pequena vila de Hastings, dois mundos colidiram — o das tradições anglo-saxônicas, enraizadas em séculos de independência tribal e monárquica, e o das ambições normandas, forjadas sob o peso da cultura feudal e da cruz cristã. Quando a poeira assentou, o rei Harold Godwinson jazia morto, e Guilherme, duque da Normandia, estava prestes a ser conhecido como William the Conqueror — Guilherme, o Conquistador.
Mas Hastings não foi um evento isolado. Foi o ápice de um processo longo, complexo e tenso, tecido por juramentos, traições, ambições dinásticas e pelo peso do destino. Para compreendê-la em profundidade, é preciso recuar ao coração do século XI, a um período em que a Inglaterra, ainda dividida entre reinos, buscava estabilidade após décadas de invasões vikings.
A morte de Eduardo, o Confessor, e a crise da sucessão
O ponto de partida é a morte de Eduardo, o Confessor, em janeiro de 1066. Eduardo era um rei piedoso e sem herdeiros diretos. Sua santidade, reverenciada pela Igreja, não o livrou de um problema político fundamental: quem herdaria o trono da Inglaterra?
Durante seu reinado, Eduardo cultivou laços profundos com a Normandia, onde passara boa parte da juventude exilado. Muitos nobres normandos haviam se estabelecido na corte inglesa, e entre eles o poderoso Guilherme, duque da Normandia, que afirmava ter recebido do próprio Eduardo a promessa do trono. Segundo fontes normandas, o rei inglês teria designado Guilherme como sucessor em reconhecimento à ajuda militar e ao apoio político prestado pela Normandia.
Do outro lado, a poderosa Casa de Godwin, liderada por Harold Godwinson, conde de Wessex, dominava a aristocracia anglo-saxônica. Harold era o homem mais influente do reino e cunhado de Eduardo. Quando o rei morreu, foi Harold quem assumiu o controle imediato, sendo coroado em 6 de janeiro de 1066, na Abadia de Westminster — o mesmo dia do funeral de Eduardo.
A coroação de Harold foi rápida e eficiente, mas também polêmica. Guilherme considerou o ato uma usurpação e alegou que Harold havia violado um juramento sagrado feito anos antes na Normandia.
O juramento de Harold e a ira normanda
O suposto juramento de Harold é um dos episódios mais controversos da história medieval. As crônicas normandas — especialmente a Gesta Guillelmi de Guillaume de Poitiers e a Tapisserie de Bayeux — afirmam que, em 1064, Harold teria sido capturado por Guy de Ponthieu e entregue a Guilherme. Hospedado pelo duque, Harold teria jurado fidelidade sobre relíquias sagradas, prometendo apoiar a reivindicação normanda ao trono inglês.
Os cronistas ingleses, porém, contestam essa versão, sugerindo que o juramento foi arrancado à força, sob coação. Seja como for, Guilherme encontrou nele a justificativa moral e religiosa para a invasão. Com o apoio do Papa Alexandre II, que lhe concedeu um estandarte papal — símbolo de cruzada —, o duque transformou sua ambição em guerra santa pela legitimidade.
Entre 1065 e 1066, a Normandia fervilhava de preparativos. Guilherme reuniu um exército multinacional — normandos, bretões, flamengos e até aventureiros italianos. Mandou construir centenas de navios e concentrar suas forças em Dives-sur-Mer. O duque não era apenas um guerreiro; era um estrategista político de rara visão. Ao prometer terras e títulos, atraiu à sua causa os mais ambiciosos cavaleiros da Europa.
Enquanto isso, na Inglaterra, Harold enfrentava outro desafio: uma invasão viking liderada por Harald Hardrada, rei da Noruega, aliado a Tostig, irmão exilado de Harold.
Duas invasões, um reino sitiado
Em setembro de 1066, o exército norueguês desembarcou no norte da Inglaterra, atacando York. Harold Godwinson respondeu com velocidade impressionante, marchando mais de 300 quilômetros em apenas quatro dias para enfrentar o inimigo em Stamford Bridge.
A batalha, travada em 25 de setembro, foi uma das mais sangrentas da história anglo-saxônica. Os ingleses venceram, mas a vitória teve um custo terrível: o exército estava exausto, e muitas das tropas mais experientes haviam caído em combate.
Enquanto os sobreviventes descansavam, chegou a notícia de que Guilherme havia desembarcado em Pevensey, no sul da Inglaterra, em 28 de setembro. Harold, sem tempo para reorganizar suas forças, marchou novamente — agora para o sul. Em apenas duas semanas, percorreu o país de ponta a ponta, reunindo o que restava de seus guerreiros e preparando-se para enfrentar o inimigo normando nas colinas de Hastings.
O destino da Inglaterra seria decidido ali, em um único dia de combate.
Os Exércitos de 1066 — Entre o Escudo e a Lança
Em Hastings, não se enfrentaram apenas dois reis — confrontaram-se duas concepções de guerra, duas sociedades e dois mundos. O campo de batalha foi um espelho da transformação da Europa medieval: de um lado, o modelo anglo-saxão, herdeiro de tradições germânicas e comunitárias; do outro, o modelo normando, já moldado pelo feudalismo, pela cavalaria e pela disciplina hierárquica que caracterizaria o Ocidente por séculos.
O Exército Anglo-Saxão: o muro de escudos
O exército de Harold Godwinson era, essencialmente, uma força nacional. Sua espinha dorsal era o fyrd, o exército convocado de homens livres — camponeses e pequenos proprietários — obrigados a servir ao rei em tempos de guerra. Cada homem trazia suas próprias armas e víveres, o que limitava o tempo de mobilização. Ao lado deles, havia os housecarls, soldados profissionais que formavam a elite militar da Inglaterra. Esses guerreiros, equipados com longas lanças e imensas seaxes (espadas anglo-saxônicas), eram o orgulho do rei.
A tática inglesa era simples e eficaz: o muro de escudos (shield wall). Em formação cerrada, fileiras de guerreiros se alinhavam ombro a ombro, os escudos se sobrepondo como escamas. A força dessa parede humana residia na coesão e na resistência. Era uma técnica defensiva temida desde os tempos vikings, perfeita para conter a cavalaria inimiga — mas vulnerável à fadiga e ao flanco.
O equipamento saxão era pesado e funcional. Elmos cônicos com narigueiras, cotas de malha, escudos de madeira e espadas longas dominavam o campo. A infantaria era quase absoluta: a cavalaria inglesa era limitada, usada apenas para reconhecimento. A força de Harold estava em sua solidez e na moral — soldados lutando em seu próprio solo, por um rei escolhido pela assembleia (witenagemot), defendendo suas casas e famílias.
Mas havia um problema: exaustão. Após Stamford Bridge, o exército inglês marchara sem descanso. Muitos guerreiros eram feridos, e o rei não teve tempo de reunir reforços do norte. A defesa de Hastings seria travada com pressa — uma parede sólida, mas erguida sobre pernas cansadas.
O Exército Normando: a cavalaria do novo mundo
Em contraste, o exército de Guilherme da Normandia representava a vanguarda militar do século XI. Fruto da fusão entre a tradição viking e a cultura feudal francesa, os normandos dominavam a arte da cavalaria pesada, uma força letal composta por cavaleiros treinados desde a infância para lutar montados, armados com lanças longas, espadas curtas e escudos triangulares.
O exército normando era uma coalizão internacional. Havia bretões, flamengos e francos entre as fileiras, reunidos sob o estandarte de São Pedro — um presente papal que dava à invasão o caráter de cruzada. A estrutura era nitidamente feudal: cada nobre comandava seus vassalos, e Guilherme liderava todos. Essa hierarquia garantiu disciplina e coordenação, algo raro nos exércitos medievais.
Guilherme organizou suas forças em três linhas distintas: arqueiros à frente, infantaria no meio e cavalaria atrás. Essa disposição permitia alternar ataques de longo e curto alcance, preparando o terreno antes da carga principal. Os arqueiros, com arcos normandos curtos, eram cruciais para desorganizar o muro de escudos. Já a cavalaria, com seus ataques em ondas, era o golpe decisivo.
Além do treinamento e da estrutura, os normandos possuíam uma arma moral poderosa: o senso de missão. A invasão fora abençoada pela Igreja, e os cavaleiros acreditavam lutar sob o signo da cruz. Muitos cronistas relatam que os soldados normandos receberam absolvição antes da batalha — o campo de Hastings, portanto, não era apenas terreno de guerra, mas de penitência e fé.
Entre o Céu e o Campo: os símbolos da guerra
As bandeiras que tremulavam naquele dia eram mais do que estandartes; eram declarações ideológicas. O estandarte normando trazia a cruz de São Pedro, representando a aprovação papal e a ideia de guerra justa. O de Harold, segundo as fontes, exibia o dragão dourado de Wessex — símbolo ancestral dos reis ingleses e herança dos tempos de Alfredo, o Grande.
Essa dimensão simbólica é essencial. Hastings não foi uma simples disputa territorial; foi um choque de legitimidades. Para os ingleses, Harold era o rei eleito segundo os costumes da terra. Para os normandos, Guilherme era o herdeiro legítimo designado por Eduardo, e sua vitória significaria a restauração da ordem divina.
As duas visões do poder — uma baseada no costume, outra na autoridade papal — colidiriam sob o ruído das lanças e o soar dos chifres de guerra.
A véspera do combate
Na noite de 13 de outubro, o acampamento inglês rezava e bebia. Harold, segundo as crônicas, jantou com seus homens, falando-lhes como iguais, lembrando-lhes de Stamford Bridge e de sua vitória recente. Já no campo normando, Guilherme celebrou missa e confessou seus soldados. Dois mundos, duas liturgias: o guerreiro pagão-cristão dos saxões contra o cruzado latino da Normandia.
O amanhecer seguinte seria o fim de uma era.
O Dia da Batalha – 14 de Outubro de 1066
O sol nascera sobre as colinas úmidas de Sussex, tingindo de ouro o orvalho que cobria os campos de Senlac Hill. O dia prometia ser claro e frio — um prenúncio de que o destino da Inglaterra seria decidido sob um céu sem disfarces.
No topo da colina, Harold Godwinson dispôs suas forças em uma posição defensiva magistral. À sua frente, o terreno inclinava-se em declive, obrigando qualquer atacante a lutar morro acima. O muro de escudos saxão estendia-se em linha contínua, sólido como uma muralha viva. Atrás dele, os estandartes tremulavam ao vento: o dragão dourado de Wessex e o estandarte pessoal de Harold, bordado pela rainha Edith, sua esposa.
No sopé da colina, Guilherme da Normandia organizava suas tropas com precisão. À frente, arqueiros normandos e bretões; atrás deles, a infantaria, e na retaguarda, a cavalaria pesada — o verdadeiro punho de ferro da Normandia. As três divisões — normanda, flamenga e bretã — formavam um exército coeso, disciplinado e abençoado pelo papa.
O duque, vestindo cota de malha e montado em seu cavalo andaluz, ergueu o estandarte de São Pedro e gritou:
“Deus está conosco! Avante, filhos da Normandia, pela fé e pelo direito!”
O rugido das trompas respondeu-lhe como um trovão. A batalha começou.
As primeiras horas
A ofensiva iniciou-se com uma chuva de flechas. As setas normandas cruzaram o céu, mas a maioria se perdeu nos escudos inclinados ou nas armaduras saxônicas. Os arqueiros recuaram e abriram espaço para a infantaria, que subiu a colina em formação compacta.
O choque foi brutal. Os saxões, firmes atrás de seus escudos, repeliram cada investida. O som metálico das lâminas ecoava entre gritos e cânticos de guerra. Quando a primeira linha normanda começou a recuar, o exército inglês respondeu com um brado:
“Out! Out! God Almighty!”
Durante horas, a linha saxã permaneceu inquebrantável. Os normandos avançavam em ondas, e cada uma delas se despedaçava contra o muro de escudos. A vantagem do terreno, a disciplina e o fervor patriótico faziam dos ingleses uma muralha quase invencível.
Mas a força da colina tinha um preço: imobilidade. A cada carga repelida, os normandos recuavam apenas para reorganizar-se. Guilherme percebeu que o muro de escudos não seria vencido pela força — mas pela astúcia.
O recuo fingido
Por volta do meio-dia, uma das alas bretãs — desgastada e pressionada — começou a ceder. Os saxões, acreditando na vitória, romperam a formação e perseguiram os fugitivos morro abaixo. O que parecia um colapso, porém, era uma manobra deliberada.
Guilherme, estrategista consumado, ordenara um recuo fingido, inspirando-se em táticas usadas pelos cavaleiros francos e até pelos sarracenos. Assim que os saxões deixaram sua posição defensiva, os cavaleiros normandos giraram suas montarias e os cercaram em campo aberto. A cavalaria investiu com lanças em riste, cortando os perseguidores como lâminas em um moinho humano.
A colina, antes coberta por um muro inquebrantável, começava a se abrir em brechas mortais.
A virada da batalha
À tarde, o ritmo da luta tornara-se um ciclo de investidas e recuos. Harold mantinha o centro da formação, lutando lado a lado com seus housecarls, enquanto o irmão Gyrth comandava o flanco direito. Flechas e lanças choviam incessantemente.
Foi então que Gyrth caiu, atingido por uma lança normanda. Logo depois, Leofwine, outro irmão de Harold, foi morto. A liderança inglesa começava a ruir. Guilherme, percebendo a hesitação inimiga, ordenou um novo ataque em três frentes.
Agora, os arqueiros receberam ordens específicas: disparar alto. As flechas cruzaram os céus em arcos longos, caindo sobre as cabeças dos saxões. E foi nesse momento, segundo a Tapisserie de Bayeux, que Harold foi atingido no olho por uma flecha — um golpe simbólico e fatal.
Embora alguns cronistas — como Guillaume de Poitiers — afirmem que o rei morreu cercado por cavaleiros normandos, lutando até o fim, a versão da flecha permaneceu a mais célebre. Seja mito ou verdade, a morte de Harold marcou o colapso da resistência anglo-saxônica.
O colapso inglês e a vitória normanda
Com o rei morto, a coesão do muro de escudos desfez-se. As fileiras saxãs romperam-se e fugiram em direção ao norte. Guilherme ordenou uma última carga da cavalaria, esmagando os fugitivos no sopé da colina. O massacre foi imenso.
Ao entardecer, o campo de Senlac estava coberto de corpos — saxões e normandos indistintos, fundidos no mesmo barro. Quando a noite caiu, Guilherme caminhou entre os mortos. Seu cavalo tropeçava em lanças e escudos. Diante do corpo de Harold, o duque teria dito apenas:
“Ele foi um rei corajoso. Que Deus o julgue.”
O silêncio após a guerra
No dia seguinte, 15 de outubro, os sinos das aldeias próximas anunciaram o impossível: a Inglaterra tinha um novo senhor. Guilherme da Normandia, vitorioso, acampou em Hastings e iniciou o avanço para Londres, coroando-se rei na Abadia de Westminster, no Natal de 1066.
A conquista normanda transformaria para sempre a história do mundo anglófono. Uma nova língua, uma nova nobreza e uma nova visão de poder nasceriam daquele campo ensanguentado.
As Consequências Imediatas e o Impacto a Longo Prazo da Conquista Normanda
A vitória em Hastings não foi o fim da luta, mas o início de uma nova ordem. Quando Guilherme da Normandia deixou o campo de batalha, ele não era ainda o senhor de toda a Inglaterra — era apenas o vencedor de uma guerra. Ser rei exigia mais do que vencer: exigia consolidar o poder em um território hostil, transformar a vitória militar em domínio político e espiritual.
O caminho até Londres
Após Hastings, Guilherme marchou cautelosamente em direção a Londres, devastando o sul da Inglaterra como aviso aos resistentes. As crônicas descrevem vilas queimadas, campos arrasados e reféns executados — uma tática deliberada de terror, típica das campanhas medievais.
A capital inglesa, cercada e exaurida, acabou rendendo-se. No Natal de 1066, Guilherme foi coroado rei na Abadia de Westminster, o mesmo local onde Harold fora coroado meses antes. Durante a cerimônia, um grito dos guardas saxões fora da igreja — interpretado pelos normandos como tentativa de revolta — provocou pânico. As chamas subiram na vizinhança, e a coroação ocorreu em meio ao caos e à fumaça. O trono inglês nascia, literalmente, entre fogo e medo.
O “Domesday Book” e o novo feudalismo
Nos anos seguintes, Guilherme impôs uma reorganização total da Inglaterra. As terras foram confiscadas e redistribuídas entre os cavaleiros normandos, substituindo quase toda a nobreza anglo-saxônica. De cerca de 500 grandes proprietários ingleses, apenas uma dezena manteve suas posses.
O poder concentrou-se em torno do rei e de sua aristocracia leal. A estrutura resultante foi o feudalismo normando, um sistema de vassalagem direta, em que todo o território era considerado propriedade do monarca. Esse modelo foi registrado de forma monumental no Domesday Book, concluído em 1086, uma espécie de censo e inventário completo das riquezas do reino — algo inédito na Europa ocidental.
Esse documento, ordenado por Guilherme, representava mais do que uma ferramenta fiscal. Era o símbolo do controle absoluto do soberano sobre seu território — o olhar administrativo de um rei que queria saber não apenas quem possuía cada pedaço de terra, mas também quantas ovelhas, quantos arados e quantos servos havia em cada condado.
A Inglaterra, outrora um mosaico de lealdades locais, tornava-se agora um corpo centralizado, regido pela lei do duque de Normandia transformado em rei.
A substituição da elite e o domínio cultural
A conquista não foi apenas política e militar; foi também linguística e cultural. O anglo-saxão deixou de ser o idioma da corte e da administração. A língua normanda — um francês arcaico de raízes latinas — tornou-se o idioma do poder. Palavras como justice, court, prison, governor e royalty entraram no vocabulário inglês, substituindo termos germânicos.
Essa fusão linguística deu origem ao inglês médio, uma síntese entre o léxico normando e a gramática anglo-saxônica. O resultado foi uma língua rica, flexível e híbrida — a semente do inglês moderno.
Do ponto de vista arquitetônico, a Inglaterra se transformou em um canteiro de pedra. Castelos normandos ergueram-se em cada região: Tower of London, Warwick, Dover, Lincoln, Rochester — fortificações construídas para dominar e intimidar. Essas torres, em estilo românico, tornaram-se símbolos do novo regime: não eram apenas fortalezas, mas instrumentos de controle.
O mesmo vale para as igrejas. A arquitetura normanda, com seus arcos semicirculares e grossas paredes, substituiu as antigas basílicas saxônicas. O poder espiritual seguia o mesmo caminho que o militar: submisso ao rei e à sua linhagem.
A resistência e a brutalidade
A conquista, contudo, não foi aceita passivamente. Entre 1067 e 1070, uma série de revoltas eclodiu em várias regiões — especialmente no norte, em Yorkshire e Durham. Guilherme respondeu com uma campanha devastadora conhecida como o “Harrying of the North” (a Devastação do Norte).
As tropas normandas queimaram plantações, destruíram aldeias e mataram camponeses, lançando fome e desespero sobre a população. As crônicas de Orderic Vitalis relatam com horror que “corpos jaziam pelas estradas, e não havia ninguém para sepultá-los”. Cidades inteiras desapareceram.
O resultado foi a completa submissão da Inglaterra ao domínio normando. A brutalidade da campanha deixou uma marca profunda na memória coletiva inglesa — um trauma nacional que, séculos depois, ainda ecoaria nas crônicas e nas baladas populares.
A nova aristocracia e o nascimento do Estado inglês
Com a nobreza saxônica eliminada, Guilherme pôde construir uma nova elite baseada na lealdade pessoal. Cada barão devia ao rei o juramento de fidelidade — não a outro senhor. Essa prática, inédita em larga escala, estabeleceu o embrião do Estado centralizado que faria da Inglaterra uma potência europeia.
O sistema jurídico normando reforçou a autoridade régia. Tribunais itinerantes e juízes reais começaram a aplicar uma justiça uniforme em todo o reino, substituindo o antigo direito tribal anglo-saxão. Assim, as sementes do common law — a base do direito inglês moderno — foram lançadas no solo conquistado de Hastings.
Guilherme também criou uma nova relação entre o trono e a Igreja. Embora devedor do Papa por seu estandarte sagrado, o rei nunca permitiu interferência direta de Roma em seus assuntos internos. Ele nomeou bispos normandos e submeteu o clero à coroa. A fusão entre espada e cruz, típica da política normanda, consolidou um modelo que influenciaria a monarquia inglesa até o fim da Idade Média.
Um reino transformado
Quando Guilherme morreu, em 1087, a Inglaterra já não era o país que ele invadira duas décadas antes. A antiga monarquia anglo-saxônica havia desaparecido; o idioma mudara; a aristocracia fora substituída; as leis, reorganizadas.
Mas, mais profundamente, a própria identidade inglesa fora refundada. O orgulho insular cedeu lugar a uma cultura híbrida — anglo-normanda — que uniria o vigor germânico e a sofisticação latina. Hastings não fora apenas uma conquista: fora uma fusão civilizacional.
Como escreveria o historiador David Douglas, “após 1066, a Inglaterra deixou de olhar apenas para o norte e voltou-se para a Europa”. O mar, antes barreira, tornava-se ponte.
A Memória e o Mito de Hastings
Poucas batalhas da história foram tão imortalizadas quanto Hastings. O confronto de 1066 não apenas mudou o curso da Inglaterra — tornou-se um mito fundador, um símbolo de ruptura e renascimento, repetido e reinterpretado ao longo dos séculos. O que começou como um choque entre dois exércitos terminou como um acontecimento sagrado na memória europeia: o nascimento da Inglaterra medieval sob a sombra da cruz normanda.
A Tapeçaria de Bayeux — arte, propaganda e história
A principal testemunha visual da batalha é a célebre Tapeçaria de Bayeux, uma obra única do século XI, bordada provavelmente entre 1070 e 1080, sob encomenda do bispo Odo de Bayeux, meio-irmão de Guilherme, o Conquistador. Com cerca de 70 metros de comprimento, ela narra, em imagens contínuas, os eventos que antecederam e culminaram na vitória normanda.
A tapeçaria é, ao mesmo tempo, documento e propaganda. Cada cena glorifica a legitimidade da conquista: mostra Harold jurando fidelidade sobre relíquias sagradas, Guilherme recebendo o apoio divino e o estandarte papal, e o rei inglês caindo sob a flecha fatal. Ao mesmo tempo, é um testemunho extraordinário do imaginário visual do século XI — cavalos, navios, armas, vestes e até o cotidiano dos soldados são representados com notável precisão.
Mais que um registro militar, a tapeçaria é uma narrativa teológica. Sua estrutura sugere que a vitória normanda foi resultado de uma ordem divina — um juízo celestial sobre a Inglaterra. O próprio formato, semelhante a um friso triunfal romano, reflete a intenção de retratar Guilherme como instrumento da providência. Cada ponto de costura reforça a ideia de que Deus guiou a conquista, e que a derrota de Harold foi um castigo pela quebra de seu juramento.
O eco nas crônicas e a construção do herói
As crônicas normandas — como a Gesta Guillelmi de Guillaume de Poitiers e a Chronica Monasterii de Abingdon — apresentaram Guilherme como o novo Davi, o escolhido que destrona o usurpador. Já os cronistas ingleses, como Orderic Vitalis e o autor anônimo da Anglo-Saxon Chronicle, escreveram sob a dor da perda e o peso da nostalgia. Para eles, Hastings foi uma tragédia: o fim da velha Inglaterra, o último suspiro da liberdade saxônica antes da dominação estrangeira.
Nos séculos seguintes, cada geração reinterpretaria a batalha conforme suas próprias ansiedades. Durante o reinado dos Plantagenetas, Guilherme foi exaltado como fundador de um império que unia Inglaterra e França. No período Tudor, foi visto como símbolo da monarquia centralizada. E no século XIX, os românticos enxergaram em Hastings o drama épico do destino — o embate entre o velho e o novo, entre a lealdade e a ambição.
A redescoberta moderna e o nacionalismo
A redescoberta de Hastings pela historiografia moderna coincidiu com o século XIX, época de nacionalismos e de mitos fundadores. A tapeçaria de Bayeux tornou-se um símbolo de identidade para ingleses e franceses, cada um reivindicando a glória do evento. Historiadores britânicos como Edward Freeman e franceses como Auguste Thierry disputavam o sentido moral da conquista: para uns, era a gênese da monarquia constitucional inglesa; para outros, o triunfo da civilização latina sobre a barbárie germânica.
Na Inglaterra vitoriana, Hastings foi transformada em epopeia nacional. A batalha era ensinada nas escolas, representada em pinturas e celebrada em poemas. O rei Harold tornou-se um mártir patriótico, e Guilherme, um herói de ferro e fé — o ideal do governante medieval. O próprio termo The Norman Yoke (“o jugo normando”) surgiu como metáfora política, usada por reformistas ingleses para denunciar a herança de opressão trazida pela aristocracia conquistadora.
O olhar contemporâneo
Os estudos modernos, mais distantes da retórica nacionalista, enxergam em Hastings um ponto de inflexão civilizacional. A batalha não foi apenas uma mudança de governante — foi uma fusão de sistemas: o direito consuetudinário anglo-saxão com o feudalismo normando; o cristianismo insular com a liturgia continental; a língua germânica com o léxico francês. Dela nasceu uma cultura de síntese, que combinava a dureza nórdica e a elegância latina.
Hoje, o campo de Hastings permanece como um local de peregrinação histórica. As colinas onde o sangue de Harold e Guilherme se misturou são silenciosas, cobertas por relva e pelo vento do Canal da Mancha. O visitante pode ver as ruínas da Battle Abbey, o mosteiro erguido por Guilherme em penitência pelos mortos — um gesto que mistura culpa e consagração. No altar, o local exato onde Harold teria caído é marcado por uma pedra simples, inscrita com as palavras:
“Aqui o rei Harold foi morto. A Inglaterra perdeu sua coroa.”
O mito eterno
Ao longo de mil anos, Hastings tornou-se mais que uma batalha: tornou-se um arquétipo de destino. Cada império posterior — seja britânico, francês ou europeu — viu nela um espelho de si mesmo. Ela fala de ambição e fé, de juramentos quebrados e legitimidades forjadas, de como o poder muda de mãos, mas nunca de natureza.
Em última análise, Hastings nos lembra que a história não é feita apenas de vencedores e vencidos — mas de narrativas que sobrevivem aos séculos. Sob o rugido das trompas e o tilintar das espadas, ecoa a eterna voz do poder:
“Deus escolhe seus reis — e o homem obedece.”
Fontes
BARLOW, Frank. The Godwins: The Rise and Fall of a Noble Dynasty. London: Longman, 2002.
DOUGLAS, David C. William the Conqueror: The Norman Impact upon England. Berkeley: University of California Press, 1964.
HOWARTH, David. 1066: The Year of the Conquest. London: Penguin Books, 1977.
MORRIS, Marc. The Norman Conquest: The Battle of Hastings and the Fall of Anglo-Saxon England. London: Hutchinson, 2012.
WALKER, Ian W. Harold: The Last Anglo-Saxon King. Gloucestershire: Sutton Publishing, 1997.
VITALIS, Orderic. Historia Ecclesiastica. Oxford Medieval Texts, 1978.
POITIERS, Guillaume de. Gesta Guillelmi Ducis Normannorum et Regis Anglorum. Ed. R. Foreville. Paris: CNRS, 1952.
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