DESVENDANDO AS ORIGENS MEDIEVAIS E AS VERSÕES PRIMITIVAS DOS CONTOS DE FADAS
- História Medieval
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Quando pensamos em contos de fadas clássicos, como Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, Branca de Neve, João e Maria ou A Bela Adormecida, a imagem imediata é medieval: florestas cerradas habitadas por lobos, castelos de torres góticas, vilarejos de pedra e madeira, reis e rainhas cercados de cavaleiros e bufões. Essa associação não é apenas fruto do imaginário popular moderno; ela reflete o quanto a Idade Média, em toda a sua complexidade, moldou o caldo cultural do qual esses contos emergiram. Contudo, é preciso estabelecer desde o início uma distinção fundamental: os textos que fixaram esses contos não são medievais, mas sim modernos, enquanto os motivos, símbolos e atmosferas que os estruturam são profundamente medievais.
A confusão nasce da dificuldade em separar a oralidade medieval da textualização moderna. Durante a Idade Média, histórias circulavam de boca em boca, narradas ao redor de lareiras camponesas, em feiras públicas, nas cortes aristocráticas e até em mosteiros. Eram contos mutáveis, anônimos, que se adaptavam ao público e às circunstâncias, carregando elementos de advertência e sobrevivência: o medo da fome, a ameaça da floresta, a fragilidade diante da violência, a inveja que destrói famílias. Foi nesse universo que nasceram as sementes de narrativas como a de uma menina perdida no bosque diante de um lobo ou a de irmãos abandonados pelos pais em tempos de carestia.
No entanto, essas histórias só ganharam forma literária séculos mais tarde. Giovanni Francesco Straparola publicou, em Veneza, Le Piacevoli Notti (1550), introduzindo versões iniciais do Gato de Botas. Giambattista Basile, em Nápoles, escreveu Lo cunto de li cunti (1634–1636), conhecido como Pentamerone, onde registrou narrativas como La Gatta Cenerentola (Cinderela) e Sole, Luna e Talia (A Bela Adormecida), em versões brutais, cheias de violência e elementos grotescos, muito distantes da suavidade posterior. Charles Perrault, em Paris, deu outro passo decisivo em 1697 com os Contos da Mamãe Gansa, moldados ao gosto da corte de Luís XIV, acrescentando moralidades explícitas e removendo algumas crueldades. Já no século XIX, os Irmãos Grimm, na Alemanha, compilaram versões germânicas, mas as adaptaram ao ideal familiar burguês e ao romantismo nacionalista, reintroduzindo a violência em punições, mas protegendo a santidade da família nuclear.
Estudar as origens dos contos de fadas, portanto, exige compreender esse processo histórico de “funil narrativo”. As tradições orais medievais são a matriz, onde circulavam histórias cruas, adultas, muitas vezes impregnadas de medo e violência. A Idade Moderna representou o momento da textualização, quando Basile e Perrault cristalizaram versões que ainda guardavam traços sombrios, mas já filtradas por estilos literários e exigências sociais. O século XIX foi o tempo da nacionalização e da moral burguesa, e o século XX, com a Disney, representou a universalização em chave otimista e romântica.
Assim, quando dizemos que os contos de fadas têm raízes medievais, não significa que tenham sido escritos nesse período, mas sim que foram moldados pelas experiências concretas e pelos símbolos da Idade Média. A fome, a peste, a floresta, a violência doméstica, a religiosidade e a presença do sobrenatural são as matrizes que alimentaram narrativas que, séculos depois, se transformariam em literatura. O que chamamos hoje de contos de fadas clássicos é, em verdade, um palimpsesto: um texto moderno escrito sobre as ruínas do imaginário medieval.
Oralidade medieval e textualização moderna
Durante a Idade Média, a Europa era predominantemente oral. A maior parte da população não sabia ler nem escrever, e os livros, copiados à mão em mosteiros ou scriptoria, eram raros, caros e destinados a elites clericais ou nobres. Nesse cenário, as histórias circulavam por meio da palavra falada, sustentadas pela memória coletiva. Essa oralidade não era secundária; era a forma fundamental de transmissão cultural.
Nas aldeias, camponeses se reuniam ao redor de lareiras para ouvir narrativas contadas por mães, avós e amas. Nas feiras e nos mercados, menestréis e jograis entoavam cantos ou narrativas rimadas, muitas vezes satíricas, que preservavam motivos ancestrais. Nas cortes, trovadores e bardos adaptavam histórias de cavalaria, de amor cortês ou de feitos maravilhosos, misturando tradições célticas, germânicas e cristãs. Até os mosteiros, espaços de erudição, registravam e transmitiam exempla — pequenas narrativas moralizantes utilizadas em sermões — que muitas vezes se confundiam com histórias populares.
Essas histórias orais tinham três características centrais. A primeira era a mutabilidade. Não havia uma versão fixa: cada contador adaptava a narrativa às circunstâncias e ao público. Uma mesma história podia ter finais diferentes, personagens variados e elementos inseridos ou omitidos de acordo com a audiência. Assim, Chapeuzinho Vermelho poderia escapar em uma aldeia e ser devorada em outra.
A segunda característica era a anterioridade cultural. Muitos motivos vinham de tradições anteriores à Idade Média. A China do século IX já tinha narrativas semelhantes à Cinderela (a história de Ye Xian), enquanto no Egito greco-romano se contava a lenda de Ródope, a jovem escolhida por um faraó graças a uma sandália. Esses contos atravessaram fronteiras por meio de rotas comerciais, cruzadas e contatos culturais, sendo assimilados e remodelados no imaginário europeu medieval.
A terceira era a função social e pedagógica. Os contos transmitiam lições de sobrevivência, reforçavam normas de comportamento e advertiam contra perigos concretos. Em uma sociedade onde a fome podia devastar famílias, histórias de abandono infantil como João e Maria faziam sentido. Em um mundo onde mulheres eram vulneráveis à violência, narrativas como a da Bela Adormecida expunham riscos reais. O maravilhoso, longe de ser mero entretenimento, tinha função moralizadora e formativa.
A transição para a textualização literária ocorreu lentamente, a partir do Renascimento e do início da Idade Moderna. Giovanni Francesco Straparola, em Veneza, publicou Le Piacevoli Notti (1550), considerado o primeiro a inserir contos de fadas em uma coletânea escrita, incluindo o Gato de Botas. Giambattista Basile, em Nápoles, deu o passo seguinte com o Pentamerone (1634–1636), a primeira coleção inteiramente dedicada a contos desse tipo. Sua obra é marcada pelo estilo barroco, com uma linguagem crua, humor grotesco e forte ligação com a cultura popular napolitana.
Charles Perrault, em Paris, refinou essa tradição em 1697 com os Contos da Mamãe Gansa. Diferente de Basile, Perrault escrevia para a corte de Luís XIV, e sua obra refletia o ethos da etiqueta e da moralidade cortesã. Introduziu finais explícitos, conhecidos como moralités, em versos rimados, que reforçavam a mensagem de cada história. Foi Perrault quem consagrou o sapatinho de cristal de Cinderela e o final sem salvação de Chapeuzinho Vermelho.
No século XIX, os Irmãos Grimm, na Alemanha, recolheram histórias da tradição oral germânica. Seu objetivo era preservar o “espírito do povo” em um momento de busca pela identidade nacional alemã. Contudo, eles também editaram e adaptaram os contos. Em suas primeiras versões, muitas vezes a vilã era a mãe biológica (como em João e Maria ou Branca de Neve), mas os Grimm deslocaram a maldade para madrastas, preservando a imagem da maternidade. Também intensificaram a violência das punições, reforçando a ideia de justiça retributiva.
Assim, podemos afirmar que a Idade Média forneceu o imaginário e a oralidade, mas foram os séculos XVI, XVII e XIX que deram aos contos de fadas a forma escrita que os consagrou. O medieval é o solo fértil; o moderno, a pena que registrou.
O imaginário medieval e a pedagogia do medo
Para compreender as raízes medievais dos contos de fadas, é preciso mergulhar no imaginário coletivo da Idade Média, um universo marcado pela tensão constante entre fé e superstição, ordem e caos, segurança e ameaça. É nesse contexto que símbolos narrativos — a floresta, o lobo, a bruxa, a madrasta, a fome, a metamorfose — adquiriram a força que os tornaria universais e perenes.
A floresta medieval era, ao mesmo tempo, fonte de vida e de terror. Do ponto de vista econômico, fornecia lenha, caça e frutos; do ponto de vista simbólico, era um espaço de desorientação, onde se perdia a proteção da comunidade e da lei. Cronistas medievais descrevem como viajantes temiam cruzar bosques, não apenas por causa de lobos ou animais selvagens, mas por bandidos, foragidos e até eremitas suspeitos. Não surpreende que tantas histórias coloquem crianças perdidas no coração da floresta, como João e Maria ou Chapeuzinho Vermelho. O bosque é o limiar entre o conhecido e o desconhecido, o civilizado e o selvagem.
Outro elemento constante era a fome. A Idade Média conheceu ciclos de abundância e carestia, mas episódios como a Grande Fome de 1315–1317 marcaram profundamente a memória coletiva. Fontes da época relatam famílias que abandonaram filhos, aldeias inteiras dizimadas e até casos de canibalismo de sobrevivência. É nesse contexto que se deve ler João e Maria: o abandono das crianças não é uma invenção literária, mas uma realidade que assombrava pais em tempos de crise. A bruxa canibal, por sua vez, personifica a ameaça de um vizinho enlouquecido pela fome, capaz de devorar os mais vulneráveis.
O bestiário medieval também influenciou profundamente os contos. Animais eram carregados de significados morais. O lobo simbolizava a ferocidade e o perigo constante; o urso, a força bruta; a serpente, a astúcia e a tentação; os pássaros, mensageiros entre o mundo natural e o divino. Quando os Irmãos Grimm descrevem pombos furando os olhos das meias-irmãs de Cinderela, estão ecoando um imaginário medieval que atribuía aos animais a função de instrumentos da justiça divina.
Outro traço fundamental do imaginário medieval era a presença do sobrenatural. Para o homem medieval, o mundo era permeado por milagres, sinais e assombrações. Fadas, bruxas, lobisomens e santos conviviam na mesma paisagem mental. Os romances arturianos, tão populares na corte, inseriam naturalmente elementos mágicos no cotidiano cavaleiresco. Marie de France, no século XII, pôde escrever lais em que amantes se transformavam em aves ou cavaleiros em lobos, sem que isso fosse lido como absurdo. Essa naturalização do maravilhoso, típica da mentalidade medieval, sobreviveu nos contos de fadas.
Finalmente, há o papel da pedagogia do medo. Em sociedades onde a infância era curta — crianças de sete ou oito anos já eram inseridas no trabalho e nos deveres da vida adulta —, os contos funcionavam como advertências rápidas e eficazes. Histórias de meninas devoradas por lobos ensinavam a desconfiar de estranhos; narrativas de irmãos abandonados na floresta mostravam o risco de se perder da comunidade; contos de madrastas cruéis alertavam para a fragilidade da vida familiar em tempos de morte materna e novos casamentos. O medo, longe de ser um excesso literário, era uma ferramenta pedagógica.
Bruno Bettelheim, em sua análise psicanalítica, mostrou que os contos de fadas são eficazes porque não escondem os conflitos mais profundos: rivalidade, abandono, desejo, violência. Jacques Le Goff, por sua vez, lembrou que o imaginário medieval não separava o natural do sobrenatural, o que explica a integração de monstros, fadas e santos em narrativas aparentemente cotidianas. Marina Warner destacou que a crueldade dessas histórias não era gratuita, mas refletia o mundo instável em que surgiram.
Portanto, o imaginário medieval é o verdadeiro útero dos contos de fadas. A floresta, a fome, o bestiário e o sobrenatural foram os alicerces que sustentaram narrativas transmitidas oralmente, que séculos depois seriam fixadas em papel. Sem esse universo mental e simbólico, os contos de fadas não teriam adquirido a força que ainda hoje exercem sobre nossa imaginação.
As versões primitivas dos contos clássicos
Chapeuzinho Vermelho — advertência sexual e ecos canibais
As raízes de Chapeuzinho Vermelho são muito mais antigas do que Perrault ou os Irmãos Grimm. Variantes orais circulavam desde pelo menos o século X em regiões da França e da Itália. Uma das versões mais conhecidas é chamada Le Conte de la Mère-Grand (“O conto da Vovó”), recolhida na tradição camponesa. Nela, o lobo mata a avó, guarda a carne e o sangue e engana a menina para que consuma os restos da própria parente. O canibalismo, longe de ser exagero macabro, refletia uma realidade temida em épocas de fome: cronistas do século XIV relataram práticas de infanticídio e canibalismo em tempos de carestia.
Em algumas variantes italianas, a menina consegue escapar sozinha, enganando o lobo com astúcia. Isso sugere que, em suas formas mais antigas, o conto não dependia de um salvador masculino, mas valorizava a inteligência da protagonista.
Charles Perrault, em 1697, foi o primeiro a fixar a história em forma literária. Em Le Petit Chaperon Rouge, ele retirou o elemento canibal, mas manteve o desfecho trágico: a menina é devorada, e não há resgate. Perrault acrescentou uma moral em versos, explicando que a história é uma advertência às jovens contra os “lobos mansos”, metáfora transparente para homens sedutores que circulavam nos salões aristocráticos. Essa moralidade espelha o contexto da corte de Luís XIV, onde a etiqueta e a honra feminina eram temas de constante vigilância.
Já os Irmãos Grimm, em 1812, transformaram o conto em narrativa de redenção. Introduziram o caçador, que mata o lobo, retira Chapeuzinho e a avó vivas de sua barriga e restaura a ordem. A ênfase está na proteção da comunidade e na justiça retributiva. A menina, por sua vez, aprende a obedecer às instruções maternas e a não se desviar do caminho.
Do ponto de vista simbólico, Chapeuzinho Vermelho articula três ansiedades medievais. Primeiro, a do perigo da floresta, onde se perde a proteção da comunidade. Segundo, a da violência sexual, em uma sociedade em que meninas eram casadas cedo e expostas a riscos. Terceiro, a da ingenuidade punitiva: a desobediência leva à morte. A transição de Perrault para os Grimm reflete, assim, uma mudança de pedagogia: do medo absoluto para a esperança de salvação.
Cinderela — de assassina a princesa
O arquétipo da donzela das cinzas é um dos mais difundidos do mundo. Uma versão chinesa, a de Ye Xian, já aparece no século IX, e há ecos até no Egito greco-romano, na história de Ródope. Contudo, a primeira versão literária europeia foi registrada por Giambattista Basile em La Gatta Cenerentola, parte de seu Pentamerone (1634–1636).
A protagonista, chamada Zezolla, é uma figura ambígua. Cansada da crueldade da madrasta, conspira com sua governanta e a mata, esmagando-lhe o pescoço com a tampa de um baú. Manipula o pai para que se case com a cúmplice, mas a nova madrasta revela sua maldade, trazendo seis filhas e reduzindo Zezolla à condição de serva. A ajuda sobrenatural não vem de uma fada madrinha, mas de uma tamareira encantada, plantada a partir de um presente mágico. Essa versão é mais próxima da tradição camponesa, com violência explícita e protagonismo ativo.
Perrault, em 1697, refinou a narrativa para o público cortesão. Retirou o assassinato, criou a fada madrinha, introduziu a abóbora transformada em carruagem e consagrou os sapatinhos de cristal. É provável que essa “pantoufle de verre” tenha sido, originalmente, “pantoufle de vair” (sapato de pele rara), mas a homofonia levou ao cristal, eternizado pela tradição. Sua Cinderela é dócil, paciente e recompensada por sua virtude.
Os Irmãos Grimm, em 1812, preservaram a inocência da protagonista, mas reintroduziram violência no castigo. As meias-irmãs, instruídas pela mãe, cortam o calcanhar ou o dedão para tentar caber no sapato de ouro. Durante o casamento, pombos descem do céu e furam-lhes os olhos, condenando-as à cegueira. Aqui, vemos a pedagogia da punição medieval: o crime deve ser expiado pela dor.
Cinderela, portanto, atravessa três momentos. Em Basile, é assassina e vítima; em Perrault, virtuosa e recompensada; nos Grimm, inocente mas testemunha de castigos brutais. A evolução reflete o deslocamento da cultura popular napolitana para a moral aristocrática francesa e, depois, para a ética retributiva germânica.
A Bela Adormecida — estupro, canibalismo e beijo redentor
A versão mais antiga da Bela Adormecida aparece em Sole, Luna e Talia, de Basile. Uma profecia previa que Talia cairia em sono profundo ao espetar o dedo em um fuso. Quando isso acontece, o pai a abandona em um palácio isolado. Um rei, em uma caçada, encontra a jovem adormecida, não consegue despertá-la e a viola. Sem jamais acordar, Talia dá à luz gêmeos, chamados Sol e Lua. Apenas quando um dos bebês suga seu dedo e remove a farpa enfeitiçada é que ela desperta.
A história continua: a rainha do rei descobre a existência de Talia e das crianças e, tomada pelo ciúme, trama matá-los. Ordena que o cozinheiro prepare os filhos da rival como refeição para o rei, mas o cozinheiro salva-os em segredo. Quando Talia é trazida para a fogueira, o rei descobre a trama, condena a esposa e se casa com a jovem.
Perrault, em 1697, adaptou a narrativa em La Belle au bois dormant. Introduziu o beijo do príncipe como forma de despertar, substituindo a violação pela metáfora romântica. Contudo, manteve a segunda parte: aqui, a mãe do príncipe é uma ogra que deseja devorar a nora e os netos. Somente a intervenção do príncipe salva sua família.
Os Grimm, em 1812, eliminaram toda a segunda parte, fixando a versão mais conhecida: a princesa desperta com o beijo e vive feliz para sempre.
Do ponto de vista simbólico, a versão de Basile expõe a vulnerabilidade feminina na Idade Média, quando mulheres podiam ser violentadas sem justiça. O sono profundo é metáfora da passividade forçada; o despertar pelo bebê simboliza a maternidade como destino inevitável. O canibalismo da rainha, por sua vez, ecoa o medo de madrastas ou sogras como rivais destrutivas no seio familiar. A transição até os Grimm mostra a domesticação do horror em romance edulcorado.
João e Maria — o eco da Grande Fome medieval
Poucos contos refletem tão diretamente um evento histórico como João e Maria. A Grande Fome de 1315–1317 devastou a Europa com colheitas fracassadas, chuvas incessantes e consequente escassez de alimentos. Cronistas como Jean Froissart relataram que famílias, em desespero, abandonavam filhos para salvar os demais.
Na primeira versão publicada pelos Grimm, não é uma madrasta, mas a própria mãe biológica quem convence o pai a abandonar os filhos na floresta. Isso espelha de forma brutal as escolhas que famílias realmente enfrentaram durante a fome. A bruxa que vive em uma casa de doces simboliza a abundância ilusória: atrai crianças famintas apenas para devorá-las. Seu desejo de engordar e comer João não é simples fantasia, mas eco de relatos medievais de canibalismo em tempos de miséria.
Com o tempo, a versão foi suavizada. A mãe tornou-se madrasta, a fome desapareceu como pano de fundo e a narrativa ganhou um tom mais moralizante, com João e Maria castigando a bruxa e voltando triunfantes. Mas sua raiz medieval permanece: é uma memória cultural do horror da fome e do colapso familiar.
Branca de Neve — inveja materna e punição macabra
Branca de Neve, como a conhecemos, foi fixada pelos Grimm em 1812, mas suas raízes são medievais. Em algumas variantes orais, a vilã não era uma madrasta, mas a própria mãe. Isso reflete um conflito psicológico mais perturbador: o de uma mãe biológica que vê a filha como rival.
A rainha ordena que o caçador mate a jovem e lhe traga os pulmões e o fígado, para que os coma. A antropofagia ritual, aqui, é um eco de crenças antigas: consumir os órgãos da vítima seria uma forma de absorver suas qualidades. Quando a jovem é envenenada, seu corpo incorrupto em um caixão de vidro lembra tradições hagiográficas de santos cujos corpos não se deterioravam, reforçando a associação entre virgindade, pureza e milagre.
No final, a rainha é punida com um castigo tipicamente medieval: sapatos de ferro incandescentes nos quais é obrigada a dançar até a morte. Essa execução pública exemplifica a pedagogia do terror, em que a punição serve de espetáculo para educar a comunidade.
A suavização posterior, transformando a vilã em madrasta, reflete a moral burguesa do século XIX, que preservava a santidade da maternidade. Mas nas origens, o conto confrontava uma verdade mais incômoda: o mal podia surgir de dentro da própria família.
O maravilhoso genuinamente medieval
Embora as versões literárias de Basile e Perrault sejam modernas, a Idade Média produziu um vasto repertório de narrativas que lidavam diretamente com o maravilhoso — isto é, com o sobrenatural inserido no cotidiano. Não eram histórias infantis, mas narrativas para públicos adultos, especialmente a aristocracia cortesã, onde o fantástico se entrelaçava com o amor, a honra e a traição.
Os lais de Marie de France
Entre os séculos XII e XIII, floresceu na Europa a chamada “matéria da Bretanha”, um conjunto de histórias ligadas ao ciclo arturiano e às tradições célticas. Foi nesse contexto que surgiu a obra de Marie de France, uma das primeiras poetisas conhecidas da Europa. Seus lais, poemas narrativos curtos escritos em anglo-normando, combinavam realismo cortês e elementos fantásticos.
Em Bisclavret, Marie subverte a imagem do lobisomem. O protagonista é um nobre barão que, em determinados dias, se transforma em lobo. Quando confessa o segredo à esposa, ela o trai, roubando suas roupas para impedi-lo de retomar a forma humana. Condenado a viver como lobo, Bisclavret mantém, porém, sua nobreza e lealdade. É acolhido pelo rei e reconhecido como humano por seu comportamento. Ao final, a traição da esposa é revelada, e ela é punida com a mutilação do nariz, que se torna marca hereditária de sua descendência. O conto mostra como o “monstro” podia manter sua humanidade, enquanto o humano podia revelar sua monstruosidade interior.
Em Yonec, a crítica social é ainda mais evidente. Uma dama, aprisionada em uma torre por um marido velho e ciumento, deseja um amor como os das histórias de cavalaria. Seu desejo se concretiza quando um açor entra pela janela e se transforma em cavaleiro. Os dois tornam-se amantes, mas o marido descobre a relação e arma uma emboscada. O cavaleiro, mortalmente ferido, anuncia que ela dará à luz um filho vingador, Yonec, que um dia matará o padrasto. Aqui, a metamorfose do amante em ave, o amor impossível e a vingança do herdeiro unem o maravilhoso ao drama social da mulher aprisionada em casamentos forçados.
Os lais de Marie de France são fundamentais porque mostram como o maravilhoso medieval não era “para crianças”. Era uma linguagem literária sofisticada, usada para discutir questões de moralidade, fidelidade, desejo e poder, sempre permeadas por elementos sobrenaturais.
O ciclo arturiano e o maravilhoso cavaleiresco
Outro espaço onde o maravilhoso floresceu foi o ciclo arturiano. Histórias como as de Lancelot, Gawain e Parsifal misturavam honra cavaleiresca, espiritualidade cristã e elementos mágicos. O Santo Graal, por exemplo, surge como objeto sagrado que une o mito cristão ao imaginário céltico de caldeirões mágicos. Em Sir Gawain and the Green Knight, poema inglês do século XIV, o herói enfrenta um cavaleiro sobrenatural que sobrevive à decapitação, representando uma prova de honra e coragem.
Nesses romances, o maravilhoso não era marginal: fazia parte da trama principal. Cavaleiros cruzavam florestas encantadas, enfrentavam gigantes, dialogavam com animais falantes e encontravam damas sobrenaturais. A naturalização do fantástico era típica do imaginário medieval, onde a fronteira entre real e sobrenatural era permeável.
Coletâneas medievais de narrativas
Além da poesia cortês, a Idade Média também produziu coletâneas em prosa destinadas a pregadores, estudantes ou leitores aristocráticos. A Gesta Romanorum (séculos XIII–XIV), compilada em latim, reunia histórias de origens diversas — clássicas, orientais, folclóricas — sempre seguidas de moralizações cristãs. Servia como repositório para sermões, mas também como fonte de entretenimento. Entre seus enredos encontramos motivos que inspirariam Shakespeare, como a prova dos três cofres (O Mercador de Veneza), e elementos próximos a Rei Lear.
O Decameron de Giovanni Boccaccio (c. 1349–1353), escrito em Toscana no contexto da Peste Negra, reuniu cem novelas contadas por dez jovens refugiados no campo. Ali encontramos contos de astúcia, sátiras ao clero, tragédias de amor e episódios de humor erótico. Embora não sejam “contos de fadas” no sentido estrito, o Decameron preserva muitos elementos de narrativa popular medieval, com personagens que enfrentam a fortuna e buscam engenhosamente sobreviver ao caos da vida.
Já os Contos da Cantuária de Geoffrey Chaucer (c. 1387–1400), considerados a obra fundadora da literatura inglesa, reúnem um grupo de peregrinos que viajam ao santuário de São Tomás Becket. Cada peregrino conta histórias adequadas à sua condição social: o cavaleiro narra uma aventura cortês, o moleiro faz um conto obsceno, a freira conta uma fábula de animais. O resultado é um mosaico extraordinário da sociedade medieval inglesa, onde convivem milagres, fabliaux, histórias de santos e narrativas grotescas.
O maravilhoso como matriz dos contos
O que essas obras revelam é que o maravilhoso medieval foi uma matriz poderosa. Ele não produziu contos de fadas no sentido moderno, mas forneceu os símbolos, arquétipos e atmosferas que sobreviveriam na tradição oral e seriam cristalizados por Basile, Perrault e Grimm. A floresta encantada, o animal que fala, a mulher metamórfica, o objeto sagrado, a prova impossível, a punição exemplar — tudo isso já estava presente no repertório medieval.
Assim, se quisermos falar de contos “verdadeiramente medievais”, devemos olhar para o maravilhoso cortês de Marie de France, para os romances arturianos, para coletâneas como a Gesta Romanorum e para grandes obras como o Decameron e os Contos da Cantuária. É aí que se encontra a essência medieval que alimentou os contos de fadas modernos.
A moralidade e o medo como motores narrativos
Os contos de fadas em suas formas primitivas, moldados pela Idade Média e fixados na Modernidade, revelam uma característica fundamental: eles funcionavam como instrumentos de educação social. Muito antes de serem adocicados pela literatura infantil ou transformados em produtos de entretenimento, esses contos transmitiam normas, advertências e valores. E o mecanismo central para isso era o medo.
Na sociedade medieval, o medo era uma experiência cotidiana. O medo da fome, já mencionado, rondava até os mais abastados, pois más colheitas podiam provocar carestias generalizadas. O medo da peste, sobretudo após a devastadora Peste Negra de 1347–1351, estava presente em cada geração, com surtos que retornavam periodicamente. O medo da violência era constante: guerras locais, banditismo, invasões, perseguições religiosas. O medo do sobrenatural era ainda mais onipresente, pois crenças em demônios, bruxas, fadas malignas e lobisomens permeavam a mentalidade coletiva.
É nesse caldo que surgem contos nos quais crianças são devoradas, mulheres são violadas, mães tentam matar filhas e madrastas conspiram contra enteados. Esses elementos não eram exageros literários, mas espelhos distorcidos da vida real. Ao mesmo tempo, eram moldados em narrativas que transformavam a violência em advertência simbólica.
Bruno Bettelheim observou que os contos de fadas não escondem os conflitos mais profundos da psique humana, mas os apresentam em linguagem simples, permitindo que a criança (e, no caso medieval, também o adulto) enfrente medos universais. João e Maria não é apenas sobre duas crianças abandonadas: é sobre o pavor da rejeição e a luta pela sobrevivência. Chapeuzinho Vermelho não é apenas uma menina ingênua: é o medo da violência sexual e da sedução. Branca de Neve não é apenas bela: é alvo da inveja destrutiva que pode nascer dentro da própria família.
Jacques Le Goff, em seus estudos sobre o imaginário medieval, destacou que a Idade Média não estabelecia fronteiras rígidas entre natural e sobrenatural. Isso fazia com que o medo fosse sempre “total”: a fome não era apenas biológica, era também castigo divino; a peste não era apenas doença, mas punição moral; o lobo não era apenas animal, mas encarnação do mal. Essa fusão explica por que os contos associavam elementos concretos a metáforas espirituais.
Do ponto de vista pedagógico, o medo era uma ferramenta eficaz. Em um mundo onde a infância era curta e a mortalidade alta, não havia tempo para longas reflexões filosóficas. Narrativas rápidas, marcantes e até chocantes ensinavam o que se devia temer e como se devia agir. Desobedecer levava à morte, ser virtuoso levava à recompensa.
Mas é importante destacar que esses contos também carregavam uma dimensão ambígua. Não eram apenas manuais de moralidade. Muitas vezes, apresentavam protagonistas que sobreviviam pela astúcia, mesmo contrariando normas sociais. João engana a bruxa; algumas Chapeuzinhos escapam com esperteza; Cinderela manipula situações. Isso mostra que os contos também transmitiam uma lição de resiliência e engenho, valores essenciais em uma sociedade marcada pela precariedade.
Assim, a moralidade dos contos não era rígida como um catecismo. Ela era flexível, adaptável ao público e às circunstâncias. Mas o medo era sempre o motor. Sem o medo, não haveria lição. O medo da fome, do abandono, da violência e da traição era a matéria-prima com que o imaginário medieval educava seus ouvintes.
Conclusão
A análise das origens e transformações dos contos de fadas mostra que eles não são artefatos cristalizados de uma época, mas sim o resultado de um longo processo histórico e cultural. Eles nasceram como narrativas orais, moldadas pela experiência concreta da Idade Média — a fome, a floresta, a violência, a morte precoce, o convívio com o sobrenatural. Foram fixados em textos literários apenas séculos depois, por autores da Idade Moderna como Straparola, Basile e Perrault, que adaptaram o material popular aos gostos e preocupações de suas próprias épocas. No século XIX, os Irmãos Grimm recolheram e nacionalizaram essas histórias, adequando-as ao espírito romântico alemão e à moral da família burguesa. Finalmente, no século XX, a Disney as universalizou, transformando-as em narrativas otimizadas para consumo global, centradas no amor romântico e no otimismo.
Cada etapa desse processo funcionou como um funil cultural. Os contos medievais orais eram múltiplos, fluidos e muitas vezes brutais. Basile os registrou em estilo barroco, preservando a violência e o grotesco, mas já impondo a forma literária. Perrault domesticou-os para a corte francesa, acrescentando moralidades explícitas e retirando alguns excessos. Os Grimm, ao mesmo tempo que suavizaram certos aspectos (como substituir mães por madrastas), reintroduziram punições brutais, refletindo a pedagogia protestante da retribuição. A Disney, por fim, eliminou quase todas as sombras, transformando narrativas de advertência em histórias de esperança.
Esse processo revela algo importante: os contos de fadas sempre espelharam as ansiedades e valores de suas épocas. As versões de Basile refletem a Itália do século XVII, marcada pela instabilidade social, pela brutalidade cotidiana e pelo gosto barroco pelo grotesco. Perrault expressa a ordem moral e a etiqueta da corte absolutista de Luís XIV. Os Grimm respondem ao nacionalismo romântico alemão e ao desejo de preservar uma suposta pureza popular. A Disney projeta o otimismo do século XX e a lógica cultural da sociedade de consumo.
No entanto, apesar de todas as adaptações, os contos continuam a carregar o peso de suas origens medievais. A floresta como espaço de perigo, a fome como ameaça, o lobo como predador, a madrasta como opressora, a violência como punição, o maravilhoso como parte da realidade — tudo isso nasce no imaginário medieval e nunca desaparece totalmente. Mesmo nas versões mais açucaradas, ecoa a sombra do passado.
Estudar os contos em suas versões primitivas não é, portanto, um exercício de morbidez, mas de arqueologia cultural. É desenterrar as camadas de significado que a modernidade tentou suavizar. É compreender que a crueldade, a ambiguidade moral e o medo, tão presentes nas narrativas medievais, são reflexos de ansiedades humanas universais, que continuam a nos assombrar.
Por isso, quando hoje assistimos a uma adaptação cinematográfica de Cinderela ou lemos uma versão infantil de Chapeuzinho Vermelho, estamos, na verdade, em contato com uma cadeia de narrativas que atravessa mil anos de história. Estamos ouvindo, ainda que filtrados, os ecos das fogueiras camponesas, dos sermões monásticos, dos trovadores de corte e das mães que advertiam seus filhos em noites escuras. Estamos, sem perceber, em diálogo com o medo, a fome, a fé e a esperança de homens e mulheres medievais.
Assim, a Idade Média permanece viva em nossos contos de fadas. Não como época que os escreveu, mas como matriz simbólica que lhes deu forma, substância e perenidade. Do canibalismo de João e Maria ao beijo redentor da Bela Adormecida, da violência das irmãs de Cinderela à dança macabra da rainha má de Branca de Neve, o que encontramos é a mesma pedagogia do medo e a mesma busca de sentido diante da precariedade da vida.
Os contos de fadas são, em última análise, testemunhos da capacidade humana de transformar o horror em narrativa, a dor em metáfora, o medo em lição. É por isso que sobrevivem, adaptando-se a cada época, mas nunca perdendo o eco das suas raízes sombrias.
Fontes
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