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CONTO DE DOIS AMANTES: O CONTO ERÓTICO ESCRITO POR UM PAPA

Atualizado: 30 de ago.


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Quando pensamos em literatura erótica, é improvável que um Papa venha à mente. No entanto, em meados do século XV, Enea Silvio Piccolomini, um humanista toscano, diplomata imperial e futuro Papa Pio II, escreveu uma das narrativas mais ousadas de sua época: a Historia de duobus amantibus (“História de Dois Amantes”).


Composta por volta de 1444, essa obra é uma novela epistolar em latim, estruturada como troca de cartas entre dois personagens fictícios, Euríalo e Lucrécia. O enredo mistura paixão, erotismo e tragédia, em um estilo que remete tanto à tradição clássica de Ovídio quanto ao amor cortês medieval. O detalhe surpreendente: o autor desse texto sensual viria, poucos anos depois, a ser eleito Papa.


O Conto de Dois Amantes tornou-se um verdadeiro best-seller do Renascimento, circulando em dezenas de manuscritos e edições impressas, traduzido para várias línguas e lido em toda a Europa. Para os leitores contemporâneos, o fascínio não está apenas na narrativa em si, mas também no contraste entre o autor — um líder da Igreja, guardião da moral cristã — e a obra que celebra o desejo humano em sua forma mais intensa.

Este artigo pretende analisar a obra e seu contexto, explorando o ambiente do Humanismo italiano, a trajetória de Enea Silvio Piccolomini e a importância literária e cultural de um texto que escandalizou e encantou gerações.


O autor: Enea Silvio Piccolomini

Primeiros anos e formação


Enea Silvio Piccolomini nasceu em 1405, em Corsignano, uma pequena localidade da Toscana (posteriormente rebatizada como Pienza em sua homenagem). Filho de uma família nobre empobrecida, foi destinado à carreira intelectual e política. Desde cedo demonstrou talento para as letras, estudando em Siena e Florença, onde entrou em contato com o florescente movimento humanista.


Nos anos 1430, tornou-se secretário de figuras importantes, como o cardeal Capranica, e acompanhou missões diplomáticas no Concílio de Basileia. Sua habilidade como escritor e orador em latim humanista rapidamente lhe abriu portas na corte imperial.


Carreira diplomática e literária


Piccolomini serviu ao imperador Frederico III e circulou nas mais altas esferas do poder europeu. Sua pena versátil produziu tratados, discursos, biografias, além de cartas pessoais que são hoje um testemunho precioso da vida do século XV.


Foi nesse ambiente de intensa atividade política e cultural que escreveu a Historia de duobus amantibus. O texto não era um exercício isolado, mas fazia parte de uma tradição humanista de imitar os clássicos latinos e explorar temas amorosos.


O Papa Pio II


Em 1447, Piccolomini foi ordenado sacerdote, e em 1456 tornou-se cardeal. Dois anos depois, em 1458, foi eleito Papa Pio II. Seu pontificado foi marcado pela tentativa de organizar uma cruzada contra os turcos após a queda de Constantinopla (1453), além de iniciativas políticas e diplomáticas.


O contraste entre o humanista mundano e o pontífice da Igreja é um dos elementos que tornam sua figura fascinante. Como Papa, ele buscou projetar uma imagem de moralidade e liderança espiritual, mas sua obra literária juvenil continuou a circular, lembrando sempre o passado erótico do pontífice.


O contexto cultural: Humanismo e Renascimento

O Humanismo italiano


A obra de Piccolomini só pode ser entendida dentro do Humanismo italiano do Quattrocento. Este movimento intelectual resgatava os textos clássicos greco-romanos, colocando o homem, suas paixões e capacidades, no centro das reflexões. O latim era cultivado como língua literária e as formas antigas, como a elegia, a epístola e a sátira, eram retomadas com nova vitalidade.


Nesse ambiente, temas como o amor, o desejo e a sensualidade eram tratados não apenas como experiências humanas, mas como objetos dignos da literatura.


A tradição amorosa


O Conto de Dois Amantes dialoga com tradições múltiplas:


  • Ovídio (Ars amatoria, Heroides): inspiração para o formato epistolar e a mistura de amor e erotismo.

  • Amor cortês medieval: idealização da dama inacessível, mas com maior carga carnal.

  • Petrarca: o lirismo da paixão e da impossibilidade, embora Piccolomini vá além na explicitação sensual.


Essa fusão de influências mostra a riqueza do Humanismo: a Antiguidade reencontrada se misturava às formas medievais, criando algo novo e ousado.


Erotismo e moral cristã


O fato de um futuro Papa escrever sobre encontros amorosos e cenas eróticas não deve ser visto como contradição absoluta. No século XV, havia ainda uma relativa liberdade literária entre os humanistas, muitos dos quais transitavam entre o serviço à Igreja e a criação de obras seculares.


O erotismo não era, portanto, necessariamente um escândalo imediato — embora, com a ascensão de Piccolomini ao papado, sua autoria tenha se tornado alvo de censuras e embaraços.


A obra: Historia de duobus amantibus

Estrutura e estilo


A Historia de duobus amantibus foi escrita por volta de 1444 e circulou inicialmente em manuscritos, sendo impressa pela primeira vez em 1467, pouco após Piccolomini se tornar Papa Pio II. O texto é composto em latim humanista elegante, com forte inspiração clássica, sobretudo em Ovídio e Cícero.


O formato é epistolar: a história é narrada através de cartas trocadas entre os dois protagonistas, Euríalo e Lucrécia. Essa estrutura permite uma alternância de perspectivas, revelando não apenas os acontecimentos, mas os sentimentos, dúvidas e desejos dos personagens.


Esse recurso literário tinha longa tradição: das Heroides de Ovídio às cartas de Abelardo e Heloísa. Piccolomini recupera essa tradição, mas a reveste com uma intensidade erótica e uma sinceridade psicológica inéditas para o século XV.


Enredo


O enredo é relativamente simples, mas intenso:


  • Euríalo, jovem cortesão alemão a serviço do imperador Sigismundo, está em Siena quando conhece Lucrécia, esposa de um nobre local.

  • Um olhar em um evento público desperta paixão mútua.

  • Segue-se uma troca de cartas inflamadas, em que ambos confessam desejo e planejam encontros secretos.

  • Apesar de obstáculos sociais e do risco de adultério, os amantes vivem uma série de encontros eróticos intensos.

  • A relação, no entanto, é marcada pela tensão entre prazer e culpa.

  • No final, Euríalo é obrigado a partir, e a separação é inevitável. Os amantes sofrem, mas não conseguem evitar o destino trágico de sua paixão.


O desfecho é profundamente melancólico: o amor ardente que uniu os protagonistas não resiste às pressões sociais e às circunstâncias.


Personagens


  • Euríalo: jovem estrangeiro, apaixonado, movido pelo desejo, mas também consciente da transgressão. Representa a juventude ardente, mas vulnerável às contingências políticas.

  • Lucrécia: dama casada, bela e virtuosa, mas vencida pela paixão. Seu nome evoca a matrona romana Lucrécia, símbolo de castidade, criando um contraste irônico com a história narrada.


Essa escolha de nomes reforça a ambiguidade: virtude e desejo, honra e transgressão, convivem em um mesmo espaço narrativo.


Análise temática

Amor carnal versus amor espiritual


O tema central do conto é o conflito entre o desejo carnal e as normas espirituais e sociais. A paixão entre Euríalo e Lucrécia é avassaladora, descrita em termos físicos e eróticos. Mas o texto nunca ignora a presença da culpa e da moralidade cristã.


Essa tensão ecoa a tradição medieval do amor cortês, em que o cavaleiro amava uma dama casada, inatingível, mas com uma diferença decisiva: aqui, o amor não é apenas platônico ou idealizado, mas plenamente consumado em encontros corporais.


Erotismo como forma literária legítima


Para Piccolomini, escrever sobre erotismo não era apenas narrar escândalos. Tratava-se de mostrar, em forma literária, a força do desejo humano. O texto combina lirismo e sensualidade, mostrando que a paixão pode ser matéria digna de literatura em latim clássico.


Há trechos em que o erotismo é descrito com detalhes sutis, sempre em tom elevado, o que distingue a obra da obscenidade vulgar. Esse equilíbrio entre sensualidade e elegância explica em parte o imenso sucesso da obra.


A moralidade cristã e o desfecho


Apesar do erotismo, o conto não termina em celebração. O final trágico pode ser lido como advertência moral: o amor adúltero, embora intenso, não resiste ao tempo nem à sociedade. O prazer tem seu preço, e a separação inevitável traz sofrimento.

Assim, Piccolomini combina duas tradições: a literária humanista, que celebra o desejo e a experiência humana, e a moral cristã, que lembra os limites e as consequências das paixões carnais.


A figura da mulher


Lucrécia é um dos pontos mais interessantes. Ao mesmo tempo em que representa a dama apaixonada e vulnerável, ela também mostra iniciativa, escreve cartas, planeja encontros. Piccolomini lhe concede voz própria, algo raro na literatura latina do período.

Essa ambiguidade reflete o papel da mulher no Humanismo: simultaneamente objeto de desejo e sujeito ativo de experiências.


A recepção da obra

Sucesso imediato


Desde sua composição, por volta de 1444, a Historia de duobus amantibus alcançou enorme circulação. Antes mesmo da invenção da imprensa, já havia dezenas de cópias manuscritas espalhadas pelas cortes e universidades. Quando impressa pela primeira vez em Basileia (1467), poucos anos após a eleição de Piccolomini como Papa, a obra se tornou um dos primeiros “best-sellers” renascentistas.


Traduções em italiano, francês e alemão rapidamente multiplicaram seu alcance. O público se fascinava com a intensidade da narrativa e com o estilo refinado do latim humanista, que tornava o erotismo elegante e legitimado.


Polêmica moral


Ao mesmo tempo, a popularidade gerava desconforto. Um Papa ser autor de um conto erótico era visto como algo embaraçoso. Muitos críticos, sobretudo a partir da Contrarreforma, censuraram a obra ou tentaram minimizá-la, atribuindo-a erroneamente a outros autores.


No entanto, a circulação foi tão ampla que não havia como apagá-la. O contraste entre o pontífice austero e o escritor apaixonado apenas aumentava o interesse em torno do texto.


Influência literária


O conto influenciou outros autores renascentistas e consolidou a forma epistolar erótica como gênero. Muitos estudiosos o veem como um precursor de narrativas amorosas posteriores, desde as novelas italianas até romances sentimentais franceses.


Piccolomini e sua metamorfose como Papa


A ascensão de Piccolomini ao trono de Pedro, em 1458, sob o nome de Pio II, é um dos casos mais notáveis de transformação pessoal da história eclesiástica.

Como humanista e diplomata, ele havia escrito sobre política, amor e desejo. Como Papa, tornou-se defensor da moralidade, do poder da Igreja e da luta contra os turcos.

Suas obras papais incluem encíclicas, sermões e até uma autobiografia (Commentarii), onde procurou projetar a imagem de um líder espiritual sério e reformador. Mas, mesmo como pontífice, nunca renegou totalmente sua formação humanista — apenas deixou claro que sua juventude literária pertencia a um tempo diferente.


Esse contraste mostra a riqueza do período: um mesmo homem podia ser escritor erótico, humanista cosmopolita e Papa reformador, sem que isso fosse considerado uma contradição absoluta, mas antes reflexo das complexidades do século XV.


A importância histórica e literária do conto


A Historia de duobus amantibus é significativa por várias razões:


  1. Literária – combina tradição clássica, lirismo medieval e ousadia humanista, sendo uma das primeiras grandes novelas eróticas do Renascimento.

  2. Cultural – revela como o Humanismo conciliava desejo e moral, prazer e culpa, sem reduzir o erotismo a mera obscenidade.

  3. Histórica – escrita por um futuro Papa, a obra desafia estereótipos e mostra como a elite eclesiástica participava ativamente da vida cultural e secular.

  4. Simbólica – encarna as contradições do século XV: cristandade e paganismo, espiritualidade e sensualidade, poder e fragilidade humana.


Conclusão


O Conto de Dois Amantes permanece uma obra única na literatura europeia. Seu sucesso e sua ousadia se devem não apenas ao erotismo, mas à habilidade de Piccolomini em retratar com intensidade e elegância as paixões humanas.

Escrito por alguém que viria a ser Papa Pio II, o texto revela que até mesmo as figuras mais santificadas da história são profundamente humanas, com desejos, contradições e ambiguidades.


A novela epistolar de Euríalo e Lucrécia é, portanto, mais do que um conto erótico: é uma janela para o espírito do Humanismo, onde a herança clássica e a moral cristã conviviam em tensão produtiva. Ela nos lembra que a Idade Média tardia e o Renascimento foram períodos de complexidade, e não de simplicidade maniqueísta.


Em última análise, a Historia de duobus amantibus não escandaliza apenas pelo autor, mas pelo fato de nos mostrar que a literatura pode ser espaço de desejo, tragédia e reflexão moral — mesmo quando escrita pela pena de um Papa.

Fontes


COLEMAN, Catherine. Enea Silvio Piccolomini (Pius II) as a writer of fiction. Renaissance Quarterly, v. 38, n. 1, 1985.


GARIN, Eugenio. O Humanismo Italiano. São Paulo: Perspectiva, 1990.


GILLESPIE, Charles. Love, Letters, and Desire in the Fifteenth Century: The Story of Two Lovers. Journal of Medieval and Renaissance Studies, v. 25, 1995.


HAY, Denys. Pius II: The Humanist Pope. Oxford: Clarendon Press, 1971.


PICCOLOMINI, Enea Silvio. Historia de duobus amantibus. Basileia: 1467.


SYLVIA, Federico. Amor e Retórica no Humanismo Italiano. Firenze: Olschki, 2007.


VOIGT, Georg. Enea Silvio de’ Piccolomini als Papst Pius der Zweite und sein Zeitalter. Berlin: Weidmann, 1856.

Fontes


Nicoletta Marcelli, "Favole parabole istorie". Le forme della scrittura novellistica dal Medioevo al Rinascimento (traduzido para português)

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