GILLES DE RAIS: O BARÃO SERIAL KILLER
- História Medieval
- 15 de set. de 2021
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Atualizado: 24 de ago.

A figura de Gilles de Rais ocupa um lugar singular no imaginário da Idade Média tardia. Nascido em 1405, herdeiro de uma das mais influentes famílias da Bretanha, ele teve uma trajetória marcada por contrastes extremos: de herói de guerra e Marechal da França ao lado de Joana d’Arc, tornou-se acusado de crimes hediondos contra dezenas — ou mesmo centenas — de crianças. Condenado em 1440 por assassinato, sodomia e práticas consideradas heréticas, foi enforcado e queimado publicamente em Nantes.
Sua vida é um testemunho das contradições do século XV, um período em que a guerra, a fé e a violência se entrelaçavam no cotidiano. Para uns, Gilles foi um pioneiro dos assassinos em série, encarnando um mal quase demoníaco. Para outros, vítima de um processo político e religioso, cujas confissões foram arrancadas sob tortura. Entre a história documentada e o mito literário, sua imagem deu origem até à personagem do Barba Azul, eternizada no folclore europeu.
Estudar Gilles de Rais significa explorar não apenas sua biografia, mas também o funcionamento da justiça medieval, os limites da violência aristocrática e a forma como a memória coletiva transforma figuras históricas em símbolos universais.
Origens e juventude
Gilles de Rais nasceu em setembro de 1405 no Castelo de Champtocé, no ducado da Bretanha, pertencente ao ramo da poderosa família Montmorency-Laval. Seu pai, Guy de Laval, e sua mãe, Marie de Craon, pertenciam à alta nobreza francesa, com vastas propriedades que incluíam castelos, terras férteis e direitos senhoriais.
Órfão de pai e mãe ainda criança, Gilles herdou uma imensa fortuna. Criado pelo avô materno, Jean de Craon, recebeu uma educação esmerada, com formação em latim, artes liberais, equitação, caça e sobretudo nas tradições da cavalaria. Desde cedo foi preparado para uma carreira de prestígio, moldado na mentalidade feudal que combinava guerra, ostentação e devoção.
Em 1420, Gilles casou-se com Catherine de Thouars, união que consolidou ainda mais sua riqueza e poder territorial. Na juventude, sua reputação foi a de um nobre ambicioso e extravagante, gastando fortunas em banquetes, torneios e patronagem artística. Essa inclinação para o luxo seria uma marca persistente em sua vida, tornando-se mais tarde uma das causas de sua ruína.
Carreira militar e ligação com Joana d’Arc
O grande momento de ascensão de Gilles de Rais veio no contexto da Guerra dos Cem Anos (1337–1453), conflito prolongado entre França e Inglaterra pelo trono francês. Em 1429, surge a figura de Joana d’Arc, camponesa de Domrémy que, afirmando-se guiada por vozes divinas, convenceu Carlos VII a confiar-lhe um exército para libertar Orléans.
Gilles de Rais, então jovem nobre guerreiro, foi um dos que acompanharam Joana em suas campanhas. Destacou-se em combate e demonstrou bravura nas batalhas que culminaram com a vitória francesa em Orléans, ponto decisivo na virada do conflito. Seu apoio a Joana não foi apenas militar, mas também simbólico: Gilles via nela a encarnação de uma missão divina que dava novo sentido à guerra contra os ingleses.
Em reconhecimento por seus feitos, Carlos VII o nomeou Marechal da França em 1429, uma das maiores honrarias militares do reino. Gilles participou da coroação de Carlos em Reims, ao lado de Joana, em um dos momentos mais célebres da história francesa.
Contudo, após a captura de Joana pelos borgonheses em 1430 e sua execução em Rouen em 1431, Gilles entrou em declínio. Sua carreira militar perdeu brilho e, sem a inspiração da “Donzela de Orléans”, voltou-se para uma vida de ostentação e excessos.
O declínio após a guerra
A década de 1430 marcou a transição de Gilles de Rais de herói para figura problemática. Apesar de seu título e prestígio, sua fortuna começou a se dissipar rapidamente.
Gilles era conhecido por suas despesas extravagantes: patrocinava espetáculos teatrais grandiosos, banquetes luxuosos e a construção ou reforma de castelos suntuosos. Uma de suas paixões era o teatro: chegou a financiar encenações monumentais, como um mistério religioso sobre Joana d’Arc que empregou mais de 500 figurantes, músicos e cenógrafos.
Para sustentar tais gastos, começou a vender e hipotecar terras herdadas.
Essa dilapidação de seu patrimônio despertou a preocupação da família e das autoridades, que tentaram restringir sua liberdade financeira.
Ao mesmo tempo, Gilles se cercou de alquimistas, astrólogos e ocultistas, em busca de segredos para recuperar riqueza e poder. Essa aproximação com práticas consideradas heréticas alimentou rumores de que estava envolvido em pactos demoníacos.
Foi nesse contexto de declínio que começaram a surgir os desaparecimentos de crianças em regiões sob sua influência.
Os crimes atribuídos
Entre 1432 e 1440, diversas crianças desapareceram nas proximidades dos castelos de Gilles de Rais, sobretudo em Machecoul e Champtocé. Testemunhos posteriores relataram que servos de confiança do barão atraíam meninos pobres prometendo trabalho como pajens, cantores de coro ou serviçais.
As acusações que chegaram aos tribunais foram de uma crueldade sem paralelo. Gilles teria submetido as crianças a abusos sexuais, torturas e assassinatos, em rituais que misturavam violência carnal e práticas obscuras. Os corpos eram muitas vezes queimados ou enterrados em segredo.
Durante o julgamento, confessou — em parte sob tortura — a ter matado “inúmeras crianças”, número que alguns cronistas estimaram em mais de uma centena. A descrição dos crimes, preservada nos autos, é perturbadora: fala-se em estrangulamentos, mutilações e atos de profanação.
Embora haja debate historiográfico sobre a veracidade de todos os detalhes, o processo deixou claro que havia uma percepção coletiva de que Gilles havia ultrapassado todos os limites possíveis da violência aristocrática.
O julgamento de 1440
Em 1440, as suspeitas contra Gilles de Rais se tornaram insustentáveis. Após anos de desaparecimentos de crianças nas redondezas de seus domínios, denúncias começaram a se acumular. Pais, camponeses e vizinhos falavam de meninos levados aos castelos de Machecoul, Champtocé e Tiffauges que nunca mais eram vistos. O clima de medo crescia, até que as autoridades se mobilizaram.
O processo foi instaurado em Nantes sob a autoridade do tribunal eclesiástico, representado pelo bispo Jean de Malestroit, e também do tribunal secular do duque da Bretanha. Essa dupla jurisdição evidencia a gravidade das acusações: Gilles não era apenas suspeito de crimes comuns, mas também de heresia, sodomia e práticas demoníacas.
As sessões foram públicas, e as acusações chocaram a população. Testemunhas relataram em detalhes a forma como servos de Gilles recrutavam crianças, como eram levadas aos castelos e o destino cruel que as esperava. O barão inicialmente tentou negar, mas, diante da pressão e das provas acumuladas, acabou confessando parte dos crimes.
Em seus depoimentos, descreveu atos de abuso e assassinato que deixaram os juízes horrorizados. Admitiu sentir prazer em contemplar o sofrimento das vítimas, além de ter buscado, em certos momentos, ajuda de feiticeiros e alquimistas para recuperar sua fortuna por meio de invocações demoníacas.
O veredicto foi inevitável. Em outubro de 1440, Gilles de Rais foi condenado à pena de morte. A execução ocorreu em Nantes, diante de uma multidão. O barão foi enforcado e, em seguida, seu corpo queimado. Cronistas relatam que, antes da morte, expressou arrependimento e pediu perdão a Deus, sendo até mesmo objeto de compaixão por parte do público. Sua queda representava o fim trágico de um homem que havia sido um dos maiores heróis militares da França.
Gilles de Rais e o imaginário do mal
O impacto do julgamento foi profundo. A figura de Gilles de Rais rapidamente se transformou em sinônimo do mal absoluto. Seus crimes não eram vistos apenas como atos individuais, mas como prova de uma corrupção demoníaca que ameaçava a ordem cristã.
A literatura popular logo incorporou sua imagem. Muitos estudiosos associam Gilles à figura do Barba Azul, personagem do conto que narra a história de um nobre rico que assassinava suas esposas em segredo. Embora a lenda tenha se consolidado apenas no século XVII, com Charles Perrault, as semelhanças são evidentes: o castelo isolado, o segredo mortal, o aristocrata cruel. A memória coletiva de Gilles teria alimentado esse imaginário.
No folclore bretão, seu nome permaneceu como advertência: contava-se às crianças que o “Barão de Retz” viria buscá-las se não obedecessem. O nobre herói transformou-se em um espectro que assombrava a infância.
A associação com o mal absoluto também foi retomada por autores modernos. Georges Bataille, em O Processo de Gilles de Rais, descreveu-o como uma figura paradoxal: simultaneamente um devoto católico e um monstro carnal, alguém que encarnava as contradições entre espiritualidade e violência.
A reinterpretação moderna
Nos séculos XIX e XX, historiadores começaram a revisitar o caso. Surgiu então o debate: Gilles de Rais foi realmente culpado de todos os crimes que lhe foram atribuídos, ou teria sido vítima de um complô político e eclesiástico?
Alguns autores, como Matei Cazacu, defendem a veracidade das confissões e a existência real dos assassinatos em massa. Para eles, os testemunhos, embora obtidos sob tortura, possuem consistência, e os desaparecimentos não podem ser explicados de outra forma. Gilles seria, portanto, um serial killer avant la lettre, expressão de uma patologia que só séculos depois receberia esse nome.
Por outro lado, estudiosos como Gilbert Prouteau e alguns juristas modernos argumentam que o processo pode ter sido manipulado. A Igreja e o ducado da Bretanha tinham interesse em se apropriar das terras e riquezas restantes de Gilles. Além disso, os métodos judiciais da época permitiam confissões forçadas e testemunhos frágeis. Para esses revisionistas, Gilles pode ter sido alvo de uma máquina política eclesiástica, sendo menos um assassino monstruoso e mais uma vítima de seu contexto histórico.
Em 1992, um “julgamento simulado” promovido na França absolveu Gilles de Rais das acusações, destacando as falhas processuais. No entanto, essa revisão não possui valor histórico definitivo, servindo apenas como exercício de memória crítica.
Gilles de Rais como “serial killer medieval”
Independentemente das disputas historiográficas, a figura de Gilles de Rais é frequentemente apresentada como exemplo de assassino em série medieval. Seu caso apresenta paralelos com perfis modernos: vítima jovem, vulnerável, escolhida ao acaso; método repetitivo; prazer ligado ao controle, ao sofrimento e à morte; ocultação dos corpos.
Se de fato os crimes ocorreram da maneira registrada, Gilles teria sido responsável por um dos maiores massacres individuais da Idade Média europeia. Sua posição aristocrática lhe permitiu agir impunemente durante anos, protegido por muros senhoriais e pela aura de poder feudal.
Ao mesmo tempo, sua história nos revela a fragilidade da justiça medieval diante de crimes desse tipo. Até ser julgado, Gilles era intocável, mesmo com suspeitas persistentes. Apenas quando interesses políticos e eclesiásticos convergiram foi que seu processo avançou.
Conclusão
A vida de Gilles de Rais é marcada pelo contraste: de marechal da França e herói ao lado de Joana d’Arc a criminoso condenado como assassino e herege. Sua trajetória nos revela os excessos de um nobre feudal, o peso da justiça medieval e a construção de mitos em torno do mal.
Seja como monstro real, seja como vítima de conspiração, sua memória atravessou séculos e permaneceu viva no folclore, na literatura e na historiografia. Gilles encarna o limite entre história e lenda, entre o humano e o demoníaco, entre a glória militar e a degradação moral.
Estudá-lo é compreender não apenas um crime, mas o próprio funcionamento da sociedade medieval tardia, em suas tensões entre poder, fé e violência. Gilles de Rais foi, em muitos aspectos, o primeiro grande “serial killer” da imaginação ocidental — real ou construído — e, por isso, continua a fascinar e a horrorizar até hoje.
Fontes
BATAILLE, Georges. O Processo de Gilles de Rais. Rio de Janeiro: Imago, 1988.
KAMINSKY, Howard. “Gilles de Rais: The Authentic Bluebeard.” Journal of Interdisciplinary History, vol. 10, n. 1, 1979.
KELLY, Henry Ansgar. The Devil at Baptism: Ritual, Theology, and Drama. Ithaca: Cornell University Press, 1985.
MURPHY, Neil. The Hundred Years War: A People’s History. New Haven: Yale University Press, 2016.
Excelente conteúdo, conheci ele no livro do Eliphas Levi e quando fui pesquisar sobre ele putz chocadaaa.