Carlos VI da França
- História Medieval

- 9 de nov.
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Carlos VI da França ascendeu ao trono em 1380, num momento em que o reino francês ainda colhia os frutos do reinado eficaz de seu pai, Carlos V da França, o Sábio. No entanto, o que parecia uma continuação de estabilidade logo se transformou numa terrível sucessão de crises: políticas, dinásticas, militares e pessoais. O monarca que entrou na história como “Le Bien-Aimé” acabaria por ser lembrado como “Le Fol” — o Louco.
Sua vida e reinado tornam-se um espelho das contradições do final da Idade Média: a crueldade da guerra, a fragilidade dos corpos e das mentes, o choque entre o ideal da unidade real e as facções aristocráticas, e o declínio de uma dinastia que perderia progressivamente controle territorial e político. O episódio da crise de 1392, quando Carlos sofre sua primeira doença mental grave, marca o início de uma longa devolução da autoridade real para regentes, uncles e senhorios, precipitando o colapso interno do Reino de França. Como bem observa Julie Singer em Representing Mental Illness in Late Medieval France, o rei “sofreu seu primeiro episódio em 1392 e conviveu com acessos intermitentes de frenesia, melancolia e lucidez cada vez mais escassa até a sua morte em 1422”.
Ao longo do reinado, a figura pessoal de Carlos-VI se intersecciona de forma íntima com o destino da França: a guerra que se estende, a economia que se agrava, a autoridade que se esgota. Neste artigo, propomo-nos a traçar uma panorâmica detalhada — vida, ascensão, crise mental, governo, contexto da Guerra dos Cem Anos, sociedade e legado — com o objetivo de entender como e por que este rei simboliza a tensão entre o poder real e a fragilidade humana.
Ascensão ao trono e primeiros anos (1380-1392)
Nascido em 3 de dezembro de 1368, Carlos era filho de Carlos V da França e de sua segunda esposa, Joana de Bourbon. Ao falecer o pai em 16 de setembro de 1380, com apenas onze anos de idade, o novo rei foi coroado em Reims no mesmo ano. Sua coroação representava a esperança de continuidade da política bem-sucedida do pai, que havia recuperado bastante território na Guerra dos Cem Anos, reorganizado as finanças reais e restabelecido o prestígio da monarquia.
Contudo, a juventude de Carlos logo se revelaria um obstáculo à consolidação do poder pessoal. Durante sua menoridade (1380-1388), o reino foi governado por uma regência formada por seu tio Filipe, Duque da Borgonha (Filipe, o Atrevido) e outros membros da casa Valois, que controlavam a administração real. Esse período de tutela minou, de certa forma, a autoridade direta do soberano, em especial diante da aristocracia ambiciosa.
A tomada de governo e os “marmousets”
Em 1388, já com cerca de vinte anos, Carlos realizou a chamada “grande reforma dos marmousets”, rompendo o controle dos duques e retomando parcialmente o governo pessoal. Ele chamou para o governo uma série de conselheiros leais (os “marmousets”), que buscavam restaurar a autoridade real e reduzir os privilégios senhoriais. Essa iniciativa reforçou a imagem de rei ativo e reformador, porém não alterou o quadro estrutural: o reino ainda enfrentava problemas financeiros, tensão social e a concorrência da Inglaterra no conflito que se prolongava.
Corte, casamento e ambiente político
No âmbito dinástico, Carlos casou-se em 17 de julho de 1385 com Isabel da Baviera (Isabeau de Bavaria), pertencente a uma linhagem germânica que tanto ampliou alianças quanto gerou críticas por parte da nobreza francesa tradicional. A corte de Carlos foi marcada por um florescimento cultural: impostos modernos, obras de arte, festas e um esforço consciente de reafirmação real. No entanto, as bases do poder permaneceram frágeis — a monarquia dependia de seus recursos para sustentar o esforço de guerra, e a pacificação interna ainda era instável.
Panorama antes da queda — estabilidade frágil
Até 1392, o reinado de Carlos-VI pode ser lido como uma tentativa de recuperação da autoridade real perdida, combinada a reformas econômicas e militares moderadas. Contudo, o espectro da instabilidade rondava: o reino francês permanecia vulnerável à ofensiva inglesa, e as tensões internas entre os duques e o rei ainda existiam latentes. O reinado de Carlos V deixara, como legado, tanto ambição quanto herança de guerra — e o jovem rei estava prestes a experimentar pessoalmente o peso dessa herança.
Nesse ambiente de aparente normalidade histórica, ocorre o que será, em retrospectiva, o momento decisivo: em 5 de agosto de 1392, durante uma campanha militar, Carlos entra num acesso de brutal doença mental (alguns relatos falam de delírio, agressão a seus companheiros, delírios de traição) que marca o início de sua longa crise. Este evento inauguraria uma nova fase — de declínio pessoal e de vulnerabilidade real — que transformaria o trono em palco de luta entre facções e o rei em figura simbólica de uma França em colapso.
A Crise de 1392 e o nascimento do “rei louco”
O episódio de Le Mans
O ponto de ruptura do reinado de Carlos VI ocorre em agosto de 1392, durante uma expedição militar contra o duque de Bretanha. A caminho de Le Mans, sob intenso calor e tensão política, o jovem monarca — então com 24 anos — sofreu um colapso súbito. Segundo o cronista Juvénal des Ursins, o rei “voltou-se contra seus próprios cavaleiros, brandindo a espada com fúria e matando um deles antes de desabar em convulsões”.Esse ataque de violência inexplicável chocou o reino. Por semanas, Carlos permaneceu em estado de prostração, alternando períodos de lucidez e de alucinação. Julie Singer (2018) descreve o evento como “a fundação simbólica da patologia real: o momento em que o corpo do rei deixa de ser o corpo político e se torna o corpo doente”.
A crise de 1392 marca o início de uma doença mental crônica que persistiria até sua morte. Os sintomas relatados pelos cronistas — delírios de perseguição, amnésia, gritos, recusa em se lavar, em reconhecer familiares ou em permitir o toque — sugerem um quadro compatível com esquizofrenia paranoide ou transtorno psicótico. Na linguagem da época, porém, falava-se em “possessão”, “melancolia” ou “demônio interior”.
A resposta da corte
Durante os primeiros episódios, a rainha Isabel da Baviera e o duque de Borgonha assumiram o controle do governo. Como analisa Henneman (1996), o poder desloca-se do monarca para as facções nobiliárquicas que o cercam, inaugurando o ciclo de regências disfarçadas. Cada surto de Carlos equivalia a uma suspensão de governo.
Nos anos seguintes, os acessos tornaram-se frequentes: em 1393, 1395, 1397 e 1405. Em suas fases de lucidez, o rei tentava retomar o comando, mas sua autoridade era corroída pela instabilidade. O “rei louco” tornou-se um prisioneiro de sua própria condição — e de seus parentes.
As interpretações contemporâneas da loucura
No imaginário medieval, a doença mental do soberano assumia dimensão teológica. A figura do rei era vista como ungido por Deus; logo, a demência era interpretada como sinal de castigo ou de prova espiritual.O teólogo Jean Gerson, chanceler da Universidade de Paris, via a doença de Carlos como “um mistério da providência divina”, argumento que servia para manter a legitimidade da dinastia. A loucura do rei, paradoxalmente, reforçava a sacralidade da monarquia: somente Deus poderia humilhar aquele que Ele mesmo escolhera.
Os médicos da corte — Guy de Chauliac e Jean de Bourgogne — recorreram a terapias baseadas na teoria dos humores: sangrias, banhos frios e amuletos de pedra-de-toque. Nada parecia deter o avanço da doença.
O impacto político da enfermidade
A incapacidade do rei gerou um vácuo de poder rapidamente ocupado por seus tios, os duques de Orleães e Borgonha. De acordo com Jean Favier (La Guerre de Cent Ans, 1980), o período de 1392 a 1410 constitui “uma monarquia sem rei”: a autoridade é fragmentada, o conselho real se converte em arena de disputa, e o tesouro real sofre pilhagem constante.
Enquanto isso, a Guerra dos Cem Anos entrava em nova fase. A Inglaterra, sob Ricardo II e depois Henrique IV, reorganizava suas forças. A doença de Carlos privou a França de uma liderança unificadora justamente quando o país mais necessitava dela.
Facções, guerra civil e o reino em declínio
A ausência efetiva de governo fomentou o surgimento de duas grandes facções rivais:
Os Armagnacs, liderados por Luís de Orleães (irmão do rei) e, depois, por Bernardo VII de Armagnac.
Os Borguinhões, liderados por João Sem Medo, duque de Borgonha, herdeiro de Filipe o Atrevido.
As duas famílias disputavam o controle do Conselho Real e da pessoa do rei enfermo. Como descreve Malcolm Vale (Charles VI and the French Monarchy, 2001), “quem possuísse o corpo do rei possuía a legitimidade”.
Essa luta interna rapidamente degenerou em guerra civil. De 1407 a 1435, Paris e boa parte do norte da França foram palco de massacres, assassinatos políticos e revoltas urbanas. O assassinato de Luís de Orleães, ordenado por João Sem Medo em 1407, rompeu qualquer possibilidade de reconciliação.
A intervenção inglesa e o desastre diplomático
A fragmentação interna abriu espaço para o retorno das forças inglesas. Em 1415, Henrique V da Inglaterra invadiu a Normandia e obteve vitória esmagadora em Azincourt (25 de outubro de 1415). A derrota foi não apenas militar, mas simbólica: o rei francês, doente e ausente, tornara-se um espectro.
Durante esse período, Isabel da Baviera — frequentemente acusada de oportunismo — aproximou-se dos borguinhões e negociou, junto a Henrique V, o infame Tratado de Troyes (1420).Conforme relata Autrand (Charles VI: La folie du roi, 1986), o tratado declarava Henrique V herdeiro do trono da França, deserdando o delfim Carlos (futuro Carlos VII). Carlos VI, incapaz de governar, foi induzido a sancionar o acordo. Assim, o diadème capetiano passou a dois pretendentes rivais: um inglês e um francês.
A rainha Isabel e o delfim Carlos
A figura de Isabel da Baviera permanece controversa. Crônicas borgonhesas a descrevem como mulher de ambição e luxúria; fontes armagnacs a retratam como cúmplice da Inglaterra. Historiadores modernos, como Henneman (1996), sugerem uma leitura mais pragmática: Isabel buscava sobrevivência política num cenário de anarquia.
O delfim Carlos, exilado no Vale do Loire, organizou resistência própria. É ele quem, após a morte do pai em 1422, assumirá o trono como Carlos VII, conduzindo a França à recuperação posterior. Mas, no fim do reinado de Carlos VI, o país encontrava-se dividido em três poderes: a França borgonhesa (aliada da Inglaterra), a França armagnac (do delfim) e a França ocupada.
A morte do rei e o ocaso de uma dinastia
Carlos VI morreu em Paris em 21 de outubro de 1422, após trinta anos de sofrimento mental e declínio político. Foi sepultado em Saint-Denis, ao lado de seus antepassados, sob um reino que deixava em ruínas.Para a França, a morte do “rei louco” significou menos um luto e mais um alívio. O corpo doente que simbolizava a decadência medieval deu lugar à promessa de renascimento sob Carlos VII e Joana d’Arc.
O cronista Juvénal des Ursins encerra sua Histoire de Charles VI com palavras que resumem o sentimento da época: “A França chorou por ele, não pelo rei que fora, mas pelo reino que com ele morreu”.
A Guerra dos Cem Anos sob Carlos VI e as fraturas do reino
Durante o reinado de Carlos VI, o conflito conhecido como Guerra dos Cem Anos continuou a assombrar o território francês. A herança deixada por seu pai — Carlos V da França — era de recuperação parcial das perdas territoriais e de um fortalecido sistema estatal (Autrand, 2008). Contudo, a crise do rei e o enfraquecimento da autoridade real criaram vácuos que os ingleses e seus aliados exploraram implacavelmente. Em 1415, sob o comando de Henrique V de Inglaterra, os ingleses invadiram a Normandia e infligiram uma derrota esmagadora em Batalha de Azincourt (25 de outubro de 1415). A fragilidade do trono francês — que não dispunha de um rei ativo e presente — permitiu que uma campanha inglesa tão audaciosa tivesse êxito. Em consequência, a moral francesa, as finanças e a capacidade de resistência sofreram um colapso profundo.Além disso, a falta de coesão entre os «partidos» internos — borguinhões e armagnacs — impedia uma frente comum contra o invasor: a guerra deixou de ser apenas externa para tornar-se também interna.
Tratados e concessões — o preço da debilidade real
O rei enfermo tornou-se peça de manobra nas negociações políticas. Em 1420, foi assinado o Tratado de Troia (Troyes) entre Henrique V, o delfim Carlos VII da França (futuro rei) e Carlos VI. Pelo tratado, Henrique V seria proclamado herdeiro do trono francês, deserdando o delfim. Autrand (1986) assinala que Carlos VI — em estado de delírio e manipulado por conselheiros borguinhões — participou da assinatura como se fosse um fantoche: seu selo real foi concedido mediante pressão.A assinatura do tratado implicou que, ao morrer Carlos VI, um rei inglês assumiria a coroa francesa — um cenário impensável para a monarquia capetiana, mas revelador da desesperada posição de França. O acordo tornou-se símbolo da decadência política do reinado: o rei já não era senhor do Estado, mas instrumento de decisões que o humilhavam.
Finanças, levantes populares e fome
O esforço bélico continuado e as derrotas sucessivas corroeram o erário real. O pagamento de resgates, a ocupação inglesa de terras produtivas e o saque de regiões francesas contribuíram para o empobrecimento da coroa e do povo. Como relembra Henneman (1996), a economia francesa entrou em “modo de sobrevivência”, os impostos subiram, a moeda se desvalorizou e as revoltas urbanas aumentaram. Por exemplo, a cidade de Rouen, sob domínio inglês intermitente, foi palco de tensão crescente entre cidadãos que viam seus burgueses colaborando com ocupantes e o partido armagnac que desejava resistir. A corte, incapaz de mediar ou controlar essas crises, flertava com o caos. A autoridade real ― saúde mental em declínio, poder em erosão ― via-se impotente perante a fome, a peste e a guerra.
O papel simbólico do rei e a legitimidade diluída
Tradicionalmente, o rei de França era figura absoluta: ungido, senhor dos vassalos e foco da coesão nacional. Mas Carlos VI se tornou figura decorativa. A doença mental, longe de mero problema privado, teve profundos efeitos públicos: a realeza deixou de exercer funções executivas e passou a “figurar” como símbolo. Vale (2001) afirma que “quem controlava o corpo do rei controlava a França”.Essa situação deu origem às lutas intestinas entre os duques de Orleães e Borgonha, já mencionadas, que disputavam o trono por interposta pessoa. O efetivo poder real foi periferizado ao castelo de Paris e ao palácio de Le Louvre, enquanto o país real se fragmentava. O rei, cujo corpo era febril, tremendo e festivamente desequilibrado, representava a fragilidade da própria majestade — e isso era devastador para a unidade nacional.
Estruturas políticas, sociedade e legado de um reinado fragmentado
Apesar de todos os reveses, o reinado de Carlos VI não foi apenas miséria e desgraça. A corte manteve certa vitalidade cultural: festas, jantares, ambientes literários – a presença de figuras como a poetisa Christine de Pizan, que dedicou obra à rainha Isabeau de Baviera, demonstra que o mecenato persistia.Segundo Autrand (1986), mesmo em meio à crise, o luxo real e o aparato cortesão continuaram a operar como vitrines políticas: o rei realizava cerimoniais, mantinha câmaras e criados e participava de caçadas — ainda que sua autoridade fosse simbólica. A cultura cortesã tornou-se palco de contrastes entre aparência e realidade. No entanto, o aparato administrativo real se deteriorou: cartões fiscais mal pagos, guerras de petições, inflação e abusos senhoriais retomaram o protagonismo. A descentralização do poder, com duques tomando jurisdições, reduziu o raio de ação da coroa.
A sociedade em tensão
Na sociedade francesa desse final do século XIV e início do XV, três grandes camadas sofriam distintos tipos de pressão:
Nobreza: dividida, ambiciosa e em guerra entre si. Os duques da Borgonha e de Orleães transformaram-se em potências rivais que competiam pela tutela do rei e do reino.
Clero: ator mediador entre a corte e o povo, mas também envolvido nos conflitos de facção. O declínio da autoridade real fortaleceu preeminências regionais e eclesiásticas.
Terceiro estado (burguesia e camponeses): ressentido pelos impostos e pela destruição da guerra. Revoltas locais e saque de vilas tornaram-se mais frequentes. Henneman (1996) destaca que “a autoridade fiscal da coroa tornou-se símbolo de opressão para muitos”.
A crise institucional provocou também mudança nas mentalidades: a imagem do rei santo e invencível foi substituída pela de um monarca vulnerável. Essa ruptura simbólica teve efeitos profundos na consciência coletiva francesa.
Legado e avaliação histórica
O legado de Carlos VI é complexo. Por um lado, ele é lembrado como o rei louco, cuja saúde mental frágil precipitou a divisão de um reino e facilitou a conquista inglesa. Por outro lado, sua longa permanência no trono (1380-1422) e as crises por que passou fizeram dele um paradigma da transição entre a Idade Média e a Idade Moderna.Autrand (1986) argumenta que “Carlos VI foi o príncipe das contradições: ungido e tirado do poder, rei e refém, herdeiro e perdedor”. Seu reinado encerrou a era das monarquias personalistas e inaugurou o tempo das monarquias absolutas — tardias, mas necessárias para recuperar a autoridade perdida.Em 1422, quando morreu, deixava um território devastado, mas uma dinastia que sobreviveria. O delfim Carlos VII conduziria a restauração francesa (com ajuda de Joana d’Arc), e o reinado de Carlos VI passou a ser interpretado como o antes da redenção nacional.
Reflexão final sobre o “rei louco”
A doença de Carlos VI, embora central para sua narrativa, não deve ocultar que o fruto da sua queda foi coletivo. O rei adoecido era ainda rei — e o reino fraturado respondia mais às deficiências políticas do que às fantasias de loucura.Como observa Famiglietti (2017) em sua investigação Royal Intrigue: Crisis at the Court of Charles VI (1392-1420), as facções da corte não agiram apenas por fraqueza pessoal do rei, mas por uma lógica política de oportunidade. No fim, Carlos VI tornou-se símbolo: do colapso medieval, da transição de eras e, paradoxalmente, da persistência da realeza num corpo que recusava governar.
O declínio final e a memória de um reinado trágico
Nos últimos anos de vida, Carlos VI tornou-se figura isolada dentro de seu próprio palácio. As crises mentais, cada vez mais longas e severas, afastaram-no definitivamente do governo.Crônicas relatam que o monarca passava dias inteiros sem reconhecer esposa ou filhos, recusando-se a trocar de roupas, imaginando que seu corpo era de vidro e que poderia quebrar-se a qualquer toque — um sintoma citado em diversos tratados posteriores de psicopatologia medieval. Julie Singer (2018) descreve tal episódio como “o ápice simbólico da dissolução do corpo régio: a transparência do vidro equivale à perda da autoridade e à fragilidade do poder”.
As cerimônias da corte prosseguiam como teatro, mas o centro do palco estava vazio. O “corpo político” do rei sobrevivia, sustentado por rituais, genealogias e brasões, enquanto o “corpo natural” definhava em alucinações. O poder real, outrora imagem da razão divina, transformara-se em metáfora da demência coletiva que assolava a França.
A sombra dos Borguinhões e o domínio inglês
Depois de 1415, o duque João Sem Medo buscou consolidar o controle da França setentrional. Sua morte em 1419 — assassinato ordenado por partidários do delfim Carlos durante as negociações de Montereau — reacendeu o ciclo de vingança. Seu filho, Felipe o Bom, aliou-se a Henrique V da Inglaterra.O Tratado de Troyes (1420) formalizou a desintegração: a Inglaterra controlava Paris, a Borgonha administrava a Flandres e o delfim refugiava-se no vale do Loire.
Henry Allmand (The Hundred Years War, 1988) observa que “a incapacidade de Carlos VI em mediar a rivalidade entre Orleães e Borgonha foi a causa política direta da dominação inglesa na França”. O reino tornou-se mosaico de poderes, e o rei, reduzido a selo formal de documentos que não compreendia.
Nos últimos dois anos de vida, os ingleses tratavam Carlos VI como um “fantasma vivo”, mantendo-o em Paris sob vigilância. Sua morte, em 21 de outubro de 1422, coincidiu com a de Henrique V, criando um cenário duplamente simbólico: dois reis — inimigos e parentes por tratado — morriam quase simultaneamente, deixando órfãos dois impérios que se reclamavam do mesmo trono.
A sucessão e o nascimento de uma nova França
Ao morrer, Carlos VI deixou dois herdeiros teóricos: o bebê Henrique VI da Inglaterra, proclamado rei de França em Paris conforme o tratado, e o delfim Carlos, reconhecido no sul pelos armagnacs.Essa dualidade deu origem ao prolongamento da Guerra dos Cem Anos, mas também plantou a semente da reconstrução nacional. O reinado de Carlos VII, auxiliado por Joana d’Arc, seria o contrapeso luminoso ao reinado do “rei louco”: onde um simbolizara a dissolução, o outro representaria a redenção.
Michel Favier (La Guerre de Cent Ans, 1980) interpreta essa transição como “um movimento quase litúrgico: a morte do rei insano purifica o corpo político e prepara a ressurreição da França”.
O mito do “rei louco” — interpretações e legado
A figura de Carlos VI atravessou séculos sob o signo do espanto. Nas crônicas do século XV — como a de Juvénal des Ursins (1841 [orig. século XV]) —, sua loucura era lida como punição divina pelos pecados do reino. Já os historiadores modernos, de Édouard Perroy a Philippe Contamine, reinterpretaram-na como resultado da sobrecarga hereditária e da pressão política.
Françoise Autrand (Charles VI: La folie du roi, 1986) reformulou completamente essa leitura, ao demonstrar que a “loucura real” não pode ser dissociada das estruturas do poder. “A França enlouqueceu com seu rei”, escreve ela, “porque dependia dele para existir.”
A metáfora do rei doente refletia um corpo político em metástase: corrupção, endividamento, guerras civis. Assim, o Diabolus in Musica do século anterior encontra eco na política: a dissonância tornara-se estrutura.
O corpo doente como metáfora do Estado
A ideia do corpo político — consagrada por Ernst Kantorowicz em The King’s Two Bodies (1957) — ganha em Carlos VI sua representação mais trágica. Enquanto o corpo físico definhava, o corpo místico persistia; a coroa permanecia mesmo quando a mente se desvanecia. Essa dissociação explica por que, apesar da insanidade, a monarquia francesa não colapsou juridicamente.Os rituais, a chancela e os conselhos mantinham a aparência de governo, preservando a continuidade dinástica. A loucura, paradoxalmente, salvou a monarquia: ninguém ousava destronar um ungido de Deus, ainda que incapaz.
Como observa Famiglietti (2017), “a França resistiu não graças à razão, mas à fé em seu símbolo”.
A imagem literária e popular
O “rei louco” inspirou séculos de arte e literatura. Na França renascentista, foi exemplo de advertência moral; no Romantismo, tornou-se personagem trágico; no século XX, motivo de análise psicanalítica e histórica. Na literatura moderna, é frequentemente comparado a Hamlet ou Lear — figuras de poder e desrazão. Sua imagem ecoa também em analogias políticas: o governante que enlouquece e arrasta consigo a nação.
Christine de Pizan, contemporânea de Carlos VI, escreveu em Livre de la Paix (1413) que “quando o príncipe perde o governo de si, todo o povo delira”. Nenhuma frase define melhor o destino do reinado.
Avaliação histórica e simbólica
O balanço final do governo de Carlos VI é o de um reinado-ponte entre dois mundos. Ele encerra o ciclo medieval das monarquias sagradas e antecipa a racionalização do poder que viria com o absolutismo.Sua tragédia pessoal converteu-se em paradigma político: a necessidade de instituições estáveis que transcendam o indivíduo. O que sucumbiu com ele não foi apenas uma mente, mas um modelo de Estado fundado na sacralidade e na pessoa.
Henry Allmand (1988) resume com clareza: “A loucura de Carlos VI ensinou à França que um reino não pode depender do humor de um homem”.
A lição de um reinado perdido
O estudioso Malcolm Vale (2001) sugere que a verdadeira herança de Carlos VI foi “a consciência da fragilidade do poder e da necessidade da lei”. Seu reinado mostrou que o carisma divino não bastava: era preciso estrutura, conselho, administração.
A morte do rei insano marca, portanto, o fim do mito do monarca-sacerdote e o início da noção moderna de Estado. Entre a unção e a razão, Carlos VI foi o mártir de uma ideia política.
Conclusão
O reinado de Carlos VI é uma das narrativas mais sombrias da história da França — não pela simples anedota de um rei insano, mas por ser o espelho de um mundo em transição.Sob sua coroa, a França viu-se dividida por guerras civis, invadida por estrangeiros e assolada por crises espirituais. Ao mesmo tempo, emergiam novas forças: burocracia, opinião pública, literatura política e diplomacia internacional.
Carlos VI encarna o ponto de inflexão entre a Idade Média e o Renascimento político. Seu infortúnio pessoal revelou os limites da monarquia carismática e preparou a modernidade do poder impessoal.A loucura do rei, mais do que doença, foi metáfora: o corpo que não obedecia à mente simbolizava um reino que já não obedecia à fé.
Quando morreu, em 1422, encerrou-se não apenas uma vida, mas um modelo de governo. No silêncio de sua tumba em Saint-Denis, repousa a lembrança de um soberano que amou seu reino, mas cujo destino foi perdê-lo dentro de si mesmo.
Fontes
ALLMAND, Christopher. The Hundred Years War: England and France at War c.1300–c.1450. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
AUTRAND, Françoise. Charles VI: La folie du roi. Paris: Fayard, 1986.
FAMIGLIETTI, Richard C. Royal Intrigue: Crisis at the Court of Charles VI (1392–1420). New York: AMS Press, 2017.
FAVIER, Jean. La Guerre de Cent Ans. Paris: Fayard, 1980.
HENNEMAN JR., John Bell. Olivier de Clisson and Political Society in France under Charles V and Charles VI. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1996.
JUVÉNAL DES URSINS, Jean. Histoire de Charles VI, roi de France. Paris: Renouard, 1841.
SINGER, Julie. Representing Mental Illness in Late Medieval France. Woodbridge: Boydell & Brewer, 2018.
VALE, Malcolm. Charles VI and the French Monarchy: Image and Reality. Oxford: Clarendon Press, 2001.




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