MALLEUS MALEFICARUM: O LIVRO DO CAÇADOR DE BRUXAS
- História Medieval
- 5 de set. de 2021
- 8 min de leitura
Atualizado: 6 de set.

Poucos livros da história ocidental exerceram influência tão sinistra quanto o Malleus Maleficarum, conhecido em português como O Martelo das Feiticeiras. Publicado em 1487 na cidade de Speyer, no Sacro Império Romano-Germânico, esse tratado tornou-se o manual mais famoso da caça às bruxas, circulando por toda a Europa e orientando juízes, inquisidores e autoridades seculares na perseguição contra milhares de mulheres e homens acusados de feitiçaria.
Seu impacto não pode ser compreendido sem levar em conta o momento histórico: uma sociedade marcada por crises religiosas, políticas e sociais, em que o medo do demônio se entrelaçava às tensões do cotidiano. Mais do que um simples livro, o Malleus condensou séculos de teologia, superstição e misoginia, oferecendo uma estrutura aparentemente “científica” e “jurídica” para justificar a repressão.
Mas o Malleus não foi apenas um manual de perseguição. Ele é também um espelho dos medos de sua época. O livro revela como a Igreja e a sociedade do final da Idade Média e do início da Idade Moderna viam o mundo: um campo de batalha cósmico entre Deus e o diabo, em que as mulheres eram vistas como o elo mais frágil da humanidade.
Hoje, o Malleus Maleficarum é objeto de estudo histórico, não mais de aplicação prática. Pesquisadores como Brian Levack, Jeffrey Burton Russell e Michael Bailey analisam sua importância como documento central para compreender o fenômeno da bruxaria e das perseguições que marcaram a Europa entre os séculos XV e XVII. Estudar o Malleus é mergulhar na mentalidade que legitimou torturas, julgamentos e execuções em massa — um testemunho perturbador de como ideias podem se transformar em instrumentos de violência coletiva.
Contexto histórico e intelectual
A crise da Baixa Idade Média
O Malleus Maleficarum surgiu em um período de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna, caracterizado por crises e ansiedades coletivas.
A Peste Negra (1347–1351) havia dizimado entre um terço e metade da população europeia, deixando marcas profundas no imaginário. Muitos viam a peste como castigo divino ou obra do diabo.
As guerras prolongadas, como a Guerra dos Cem Anos (1337–1453), devastaram regiões inteiras, destruindo campos e gerando fome.
As tensões religiosas cresciam com as heresias e com a crescente crítica à Igreja, que culminaria na Reforma Protestante no início do século XVI.
Nesse ambiente de instabilidade, buscava-se culpados. Minorias, estrangeiros, judeus e, sobretudo, mulheres pobres eram alvos fáceis. A crença de que desgraças coletivas podiam ser obra de feitiçaria encontrou terreno fértil.
A consolidação da demonologia
Durante grande parte da Idade Média, a Igreja via a feitiçaria como superstição sem grande poder real. O Canon Episcopi (séculos IX–X), por exemplo, afirmava que mulheres que acreditavam voar à noite com a deusa Diana estavam apenas sendo enganadas pelo demônio, e não que de fato realizassem tais feitos.
Essa visão começou a mudar no século XIII, com a consolidação do direito canônico e o fortalecimento da teologia escolástica. Autores como Tomás de Aquino defenderam a realidade da ação demoníaca no mundo, dando base teológica para se acreditar que o diabo podia agir de forma concreta por meio de pactos com humanos.
A partir do século XIV, em meio às crises, essa demonologia ganhou força. Teólogos como Johannes Nider, em seu Formicarius (1435), descreveram bruxas reunidas em sabás, capazes de provocar tempestades, destruir colheitas e matar crianças. Esse imaginário preparou o terreno para o Malleus Maleficarum.
Heinrich Kramer e Jacob Sprenger
O Malleus Maleficarum foi escrito por dois dominicanos alemães: Heinrich Kramer (Institoris) e Jacob Sprenger.
Heinrich Kramer (1430–1505) era inquisidor ativo nos territórios germânicos. Ganhou notoriedade por sua obsessão em perseguir casos de feitiçaria. Em 1485, tentou julgar mulheres acusadas de bruxaria em Innsbruck, mas encontrou resistência das autoridades locais, que consideraram seus métodos excessivos. O Malleus pode ser lido como resposta à humilhação sofrida por Kramer, tentando legitimar suas ideias.
Jacob Sprenger (1436–1495) era mestre em teologia e prior do convento dominicano de Colônia. Embora seu papel como coautor seja debatido — alguns estudiosos afirmam que sua participação foi menor do que a de Kramer —, seu nome deu peso acadêmico e eclesiástico à obra.
A publicação em 1487
O livro foi publicado em Speyer, em 1487, com aprovação papal falsamente atribuída. Kramer anexou ao início do Malleus a bula Summis desiderantes affectibus, emitida pelo Papa Inocêncio VIII em 1484, que autorizava a perseguição a bruxas na Alemanha.
Embora a bula não tenha mencionado especificamente o Malleus, sua inclusão deu ao livro um ar de autoridade papal. A obra rapidamente se espalhou, sendo reimpressa dezenas de vezes entre os séculos XV e XVII, em um período em que a imprensa de Gutenberg permitia a difusão massiva de ideias.
Estrutura e conteúdo da obra
O Malleus Maleficarum é dividido em três partes, cada uma com função específica. Essa organização dava ao texto aparência de manual sistemático, combinando argumentos teológicos, filosóficos e jurídicos.
Primeira parte: a realidade da bruxaria
Na primeira parte, os autores procuram provar que a bruxaria existe e que é uma ameaça real. Essa insistência mostra que, ainda no final do século XV, havia resistência quanto à crença na eficácia da feitiçaria.
Kramer e Sprenger mobilizam autoridades bíblicas, patrísticas e escolásticas para defender que:
O diabo tem poder real sobre o mundo.
Bruxas, em pacto com ele, podem causar danos físicos, como doenças, esterilidade e tempestades.
Negar a existência da bruxaria seria heresia, pois implicaria negar a ação demoníaca.
A ênfase não estava apenas na superstição popular, mas na ideia de que havia uma conspiração organizada contra a cristandade.
Segunda parte: práticas e poderes atribuídos às bruxas
A segunda parte descreve as supostas práticas das bruxas, como:
O pacto com o diabo, selado em cerimônias noturnas.
O voo até o sabá, auxiliado por unguentos mágicos.
A profanação da Eucaristia e dos sacramentos.
Relações sexuais com demônios (íncubos e súcubos).
Kramer e Sprenger detalham histórias de mulheres que, segundo eles, destruíam colheitas, matavam crianças e provocavam impotência nos homens. O tom é carregado de misoginia, reforçando a ideia de que as mulheres eram naturalmente mais propensas à feitiçaria.
Terceira parte: o procedimento jurídico
A terceira parte é dedicada aos procedimentos de investigação e julgamento. Aqui o Malleus se apresenta como manual prático para juízes e inquisidores. Ele recomenda:
Investigações preliminares com base em rumores e denúncias.
Interrogatórios, incluindo o uso da tortura para obter confissões.
Desconfiança das testemunhas acusadas de defender as bruxas.
A execução como pena final para os condenados.
A ênfase na tortura foi particularmente marcante. O Malleus legitima seu uso como meio de revelar a “verdade”, ainda que as confissões fossem forçadas e muitas vezes absurdas.
Misoginia e perseguição
A mulher como alvo privilegiado
O Malleus Maleficarum não deixa dúvidas: para Kramer e Sprenger, a mulher era o alvo principal da bruxaria. O livro insiste em que elas são mais inclinadas à superstição, mais luxuriosas e mais frágeis diante das tentações do diabo.
Um dos trechos mais citados afirma: “Todas as bruxarias provêm da luxúria carnal, que nas mulheres é insaciável”. Esse tipo de afirmação criou uma associação direta entre o feminino e o demoníaco.
Parteiras e curandeiras
As parteiras foram frequentemente visadas, pois detinham saberes sobre o parto e, muitas vezes, sobre ervas contraceptivas e abortivas. O Malleus as acusava de matarem crianças e oferecerem-nas ao diabo. Essa demonização do saber feminino reforçou a marginalização de mulheres que ocupavam papéis centrais nas comunidades.
Viúvas e marginalizadas
Viúvas, mulheres pobres ou com comportamentos fora do padrão também eram mais vulneráveis. O Malleus reforçava a ideia de que a bruxa era solitária, sem a proteção masculina, e por isso perigosa. Esse perfil coincide com o de muitas vítimas reais das perseguições.
A legitimação da violência
Ao construir uma base teológica, filosófica e jurídica para a caça às bruxas, o Malleus Maleficarum legitimou a violência institucionalizada. O livro transformou preconceitos sociais em doutrina oficial, fornecendo justificativa para execuções em massa. Entre os séculos XVI e XVII, tribunais seculares e eclesiásticos usaram seus argumentos para sustentar julgamentos, especialmente nos territórios germânicos, onde a caça às bruxas foi mais intensa.
Recepção e impacto do Malleus Maleficarum
Difusão pela imprensa
O Malleus Maleficarum foi publicado pela primeira vez em Speyer, 1487, e rapidamente ganhou circulação graças à invenção da imprensa de tipos móveis de Gutenberg (c. 1450). Até meados do século XVII, estima-se que tenham sido feitas mais de 30 edições impressas do tratado, em diferentes cidades da Europa.
Essa difusão garantiu que o livro chegasse não apenas a inquisidores e clérigos, mas também a magistrados seculares, que desempenhavam papel central nos julgamentos de bruxaria. Embora não tenha sido o único manual da época, o Malleus tornou-se o mais famoso e amplamente consultado.
Influência nos tribunais
Nos séculos XVI e XVII, em especial nos territórios germânicos, o Malleus serviu como referência prática em julgamentos. Ele oferecia não apenas justificativas teológicas, mas também instruções jurídicas detalhadas. Seu impacto foi sentido sobretudo nos locais onde havia maior pânico coletivo e fragilidade das instituições, resultando em processos de larga escala.
No entanto, estudiosos como Brian Levack e Stuart Clark lembram que o uso do Malleus não foi universal. Em regiões como a Espanha e a Itália, por exemplo, a Inquisição, embora implacável contra hereges, mostrou-se mais cética diante de acusações de bruxaria, rejeitando excessos inspirados pelo manual. Isso revela que a recepção da obra variou bastante conforme o contexto político e religioso.
Críticas contemporâneas
Desde sua publicação, o Malleus encontrou também opositores. Juristas e teólogos criticaram seu uso abusivo da tortura e suas afirmações exageradas. Alguns consideravam a obsessão de Kramer contra mulheres um sinal de desequilíbrio pessoal.
Em 1490, a própria Universidade de Colônia, onde Sprenger havia lecionado, publicou parecer condenando a obra como tendenciosa e juridicamente problemática. Apesar disso, a circulação impressa manteve o livro em evidência.
O declínio do Malleus e das caças às bruxas
O racionalismo e a ciência
A partir do final do século XVII, o avanço do racionalismo e da ciência moderna começou a minar as bases intelectuais do Malleus. Filósofos como René Descartes e juristas mais céticos rejeitavam a validade de provas baseadas em boatos ou confissões arrancadas sob tortura.
O novo paradigma científico passou a explicar doenças, fenômenos climáticos e desastres naturais em termos naturais, reduzindo o espaço para explicações demonológicas. Essa mudança intelectual contribuiu para o declínio das caças às bruxas e, por consequência, da autoridade do Malleus.
Mudança no sistema jurídico
As reformas legais nos Estados modernos limitaram o uso da tortura e exigiram provas mais consistentes. Isso reduziu a eficácia dos métodos descritos no Malleus. Tribunais passaram a arquivar processos por falta de evidências sólidas.
No século XVIII, o tratado já era considerado obsoleto, lembrado mais como curiosidade histórica do que como guia jurídico.
Conclusão
O Malleus Maleficarum ocupa lugar paradoxal na história. Por um lado, é um dos livros mais infames do Ocidente, símbolo da perseguição e da intolerância que levaram à morte de dezenas de milhares de pessoas, em sua maioria mulheres pobres e marginalizadas. Por outro, é uma fonte histórica indispensável, pois revela com clareza a mentalidade de uma época em que religião, superstição e direito se entrelaçavam em um sistema de repressão institucionalizada.
O tratado de Kramer e Sprenger foi produto de seu tempo: nasceu em meio a crises sociais e religiosas, refletiu medos coletivos e deu forma a preconceitos de gênero profundamente enraizados. Sua força não veio apenas de seus argumentos, mas da conjuntura que os acolheu.
Estudar o Malleus hoje significa compreender como discursos podem legitimar violência e perseguição. Ao mesmo tempo, mostra como as sociedades criam inimigos simbólicos para lidar com suas angústias. O “martelo das feiticeiras” permanece, assim, como advertência histórica: quando medo, intolerância e poder se unem, as consequências podem ser devastadoras.
Fontes
BAILEY, Michael. Battling Demons: Witchcraft, Heresy, and Reform in the Late Middle Ages. University Park: Penn State Press, 2003.
BARSTOW, Anne Llewellyn. Witchcraze: A New History of the European Witch Hunts. San Francisco: HarperCollins, 1994.
CLARK, Stuart. Thinking with Demons: The Idea of Witchcraft in Early Modern Europe. Oxford: Oxford University Press, 1997.
KRAMER, Heinrich; SPRENGER, Jacob. Malleus Maleficarum. 1487.
LEVACK, Brian. The Witch-Hunt in Early Modern Europe. London: Routledge, 2016.
PURKISS, Diane. The Witch in History: Early Modern and Twentieth-Century Representations. London: Routledge, 1996.
RUSSELL, Jeffrey Burton. Witchcraft in the Middle Ages. Ithaca: Cornell University Press, 1972.
Comentários