Samhain, a Conversão Cristã e o Halloween
- História Medieval

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À medida que o outono cobre a terra com o crepúsculo dourado das folhas caídas e os ventos começam a soprar frios sobre os campos vazios, o mundo parece suspenso entre o fim e o recomeço. Essa transição, marcada pela morte aparente da natureza, sempre evocou no homem uma reflexão sobre sua própria finitude. É nesse momento do ano, entre o fim de outubro e o início de novembro, que antigos povos da Europa celebravam uma das festas mais antigas e misteriosas de sua tradição: o Samhain — o festival celta que marcava o fim da colheita e o início do “meio escuro” do ano.
O Samhain, que em irlandês arcaico significa literalmente “fim do verão”, não era apenas uma data no calendário agrícola; era um ponto de convergência espiritual entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Segundo as crenças celtas, nesse período as barreiras entre os mundos se tornavam tênues, permitindo que os espíritos ancestrais cruzassem o véu da existência para visitar seus descendentes. Fogueiras eram acesas nas colinas da Irlanda e da Bretanha, não só para iluminar a escuridão crescente, mas também para guiar as almas e afastar entidades malignas. Era, portanto, um momento de reverência e de temor — um limiar entre o natural e o sobrenatural.
Essas celebrações, enraizadas em uma cosmovisão pagã e profundamente ligada ao ciclo agrícola, sobreviveram por séculos, mesmo diante da lenta expansão do cristianismo pela Europa ocidental. Quando missionários cristãos chegaram às Ilhas Britânicas e à Irlanda entre os séculos V e VII, encontraram um tecido espiritual vibrante e ancestral, no qual o sagrado estava intrinsecamente ligado à terra, às estações e à memória dos mortos. E, longe de simplesmente destruir essas tradições, a Igreja medieval — em sua pragmática sabedoria pastoral — escolheu reinterpretá-las, transformando símbolos pagãos em expressões da fé cristã.
Esse processo de cristianização de festivais antigos é um dos fenômenos mais marcantes da história cultural da Europa medieval. Por meio dele, a Igreja conseguiu converter costumes, mitos e celebrações sem romper completamente o vínculo emocional das populações com o passado. Assim, o Samhain, com suas fogueiras, oferendas e ritos de passagem, foi lentamente absorvido e ressignificado dentro da liturgia cristã, dando origem ao Dia de Todos os Santos (1º de novembro) e, mais tarde, ao Dia de Finados (2 de novembro). O que antes era uma homenagem aos espíritos dos antepassados tornou-se uma solenidade em honra à comunhão dos santos — os fiéis que já alcançaram a glória eterna e intercedem pelos vivos.
A transição, no entanto, não foi instantânea. Durante os séculos VIII e IX, papas como Gregório III (731–741) e Gregório IV (827–844) foram fundamentais para fixar a data e universalizar sua observância. Em Roma, Gregório III dedicou uma capela no Vaticano a todos os santos mártires e confessores, enquanto Gregório IV estendeu a celebração a toda a cristandade. O objetivo era duplo: criar uma data unificadora que celebrasse a vitória espiritual dos santos e, ao mesmo tempo, substituir rituais pagãos persistentes, especialmente na Irlanda, Escócia e Gália, por práticas cristãs equivalentes. Desse modo, o fogo de Samhain foi transformado na luz dos altares, e as oferendas pelos mortos se converteram em orações e missas pelas almas do Purgatório.
Ainda assim, a antiga herança celta resistiu sob novas formas. Acreditava-se que, na véspera do Dia de Todos os Santos — o All Hallows’ Eve, que mais tarde se tornaria o Halloween —, os mortos ainda podiam visitar o mundo dos vivos. As velhas superstições sobreviveram nos costumes populares: acender velas para guiar as almas, mascarar-se para enganar os espíritos, deixar comida do lado de fora das casas em oferenda. A cristianização do Samhain não eliminou sua essência simbólica — apenas a transfigurou. O medo da morte deu lugar à esperança da ressurreição; o culto aos antepassados foi transformado na comunhão com os santos.
Essa fusão entre paganismo e cristianismo — entre fogo e luz, entre medo e fé — representa um dos episódios mais fascinantes da história religiosa da Idade Média. Ela revela a complexidade de um tempo em que a Igreja não apenas pregava, mas também dialogava com o imaginário popular, moldando-o em novos significados. A festa que hoje conhecemos como Dia de Todos os Santos é, portanto, o resultado de uma longa alquimia espiritual: a conversão de uma celebração da morte em um hino à eternidade.
O presente estudo buscará compreender essa metamorfose — do Samhain celta à liturgia cristã — analisando seus aspectos religiosos, sociais e simbólicos. Exploraremos o papel das antigas crenças druidas, a política missionária da Igreja, a consolidação das festas de novembro e o modo como a memória dos mortos foi reinterpretada ao longo da Idade Média. Mais do que uma simples história de substituição cultural, trata-se de uma história de continuidade, onde os ecos de um passado pré-cristão ainda ressoam, discretos mas persistentes, nas orações recitadas diante das tumbas e nas velas acesas nas noites frias de novembro.
O Samhain Celta: Entre o Mundo dos Vivos e o dos Mortos
Entre o crepitar das fogueiras e o sussurro dos ventos outonais, o Samhain (pronuncia-se sôuin em gaélico antigo) marcava, para os povos celtas, o momento em que o mundo conhecido se desfazia lentamente nas brumas do desconhecido. Era o ponto liminar do calendário anual, quando o ciclo agrícola terminava e o inverno — símbolo de morte e renovação — tomava conta da paisagem.
Nas regiões da Irlanda, Escócia, Gália e Bretanha, o ano era dividido em duas grandes metades: a clara (verão) e a escura (inverno). O Samhain, celebrado entre 31 de outubro e 1º de novembro, marcava o fim da estação das colheitas e o início do tempo de repouso da terra. Barry Cunliffe, em The Ancient Celts (1997), explica que o Samhain não era apenas um rito de passagem agrícola, mas um evento de profunda dimensão espiritual, em que “a fronteira entre o mundo visível e o invisível tornava-se permeável”.
Segundo o calendário pastoral dos antigos celtas, o Samhain encerrava o ciclo de trabalho e abria o período em que os rebanhos eram recolhidos e os campos, deixados em repouso. Era também o momento de ajustar contas, celebrar alianças e renovar juramentos. Assim, o festival possuía uma dimensão social e política, reunindo as tribos em torno dos druidas, sacerdotes e sábios que presidiam os ritos. Miranda Green, especialista em religiões celtas, observa que o Samhain era “um tempo de suspensão das leis humanas, quando o mundo espiritual se aproximava perigosamente do terreno” (The World of the Druids, 1997).
As celebrações eram marcadas por grandes fogueiras (bone-fires, termo que possivelmente deriva de bone fires, fogueiras de ossos). Nelas, eram queimados restos de colheitas e oferendas simbólicas aos deuses e aos ancestrais. O fogo representava o poder purificador e protetor da luz diante da escuridão crescente. As famílias levavam brasas dessas fogueiras sagradas para reacender o lar, acreditando que assim garantiriam proteção espiritual durante o inverno.
Mas o Samhain também era uma noite de incerteza e medo. Acreditava-se que, nesse limiar do ano, as almas dos mortos retornavam ao mundo dos vivos — não apenas os espíritos benevolentes dos ancestrais, mas também seres do Sídh, o “Outro Mundo” celta, lar de fadas, divindades e criaturas sobrenaturais. Os portais entre os mundos se abriam, e os limites da realidade eram dissolvidos. As pessoas acendiam tochas, usavam máscaras e disfarces para confundir os espíritos, e deixavam oferendas de comida e bebida nas portas, como forma de apaziguá-los.
Essas práticas de disfarce e oferenda constituem o embrião do que, séculos mais tarde, daria origem à tradição moderna do Halloween. Contudo, em sua origem, não havia nada de lúdico. As máscaras não eram meros adornos festivos — eram amuletos de sobrevivência espiritual, um modo de os vivos enganarem a morte, assumindo temporariamente a aparência do mundo que os ameaçava.
Os druidas desempenhavam papel central nesses rituais. Eles presidiam sacrifícios de animais e, em certos casos, rituais de adivinhação e consulta aos espíritos. O Samhain era o tempo do oráculo, quando se acreditava que os mortos e os deuses falavam mais claramente. Os sacerdotes celtas invocavam os ancestrais e consultavam presságios sobre o futuro das colheitas, as guerras ou o destino das tribos. Segundo o Lebor Gabála Érenn (“O Livro das Invasões da Irlanda”, compilado entre os séculos XI e XII), as assembleias de Samhain eram também momentos de profecia e decisão tribal, reunindo os chefes e guerreiros sob a benção dos deuses.
A mitologia irlandesa preserva ecos dessas celebrações. Em narrativas como The Adventures of Nera, descrita no Leabhar na hUidhre (século XII), o herói Nera entra no mundo dos mortos durante o Samhain, atravessando uma porta invisível aberta apenas naquela noite. Lá, ele testemunha horrores e visões que revelam o poder dos espíritos. Essa lenda é um testemunho literário do caráter liminar e perigoso do festival: quem ousasse cruzar o véu entre os mundos podia nunca mais retornar.
Além da dimensão espiritual, o Samhain também tinha uma função cosmogônica. Ele representava o fim do ciclo solar e o retorno ao caos primordial — um breve intervalo antes da recriação do mundo. O fogo, o sacrifício e o banquete eram ritos simbólicos de morte e renascimento, refletindo uma filosofia cíclica da existência. Assim como o campo repousava sob a neve antes da primavera, a alma humana também deveria atravessar a noite do mundo antes de alcançar a luz.
Essa concepção cíclica da vida e da morte era estranha à teologia cristã, baseada na linearidade do tempo e na unicidade da salvação. No entanto, quando os missionários cristãos chegaram às terras celtas, perceberam que o Samhain representava uma oportunidade estratégica de diálogo. Ao invés de tentar erradicar as celebrações — o que seria culturalmente inviável —, os monges e pregadores começaram a reinterpretar seus significados, transformando o festival dos mortos em uma ocasião de oração e lembrança cristã.
Foi assim que o fim do verão pagão começou lentamente a se fundir ao início da eternidade cristã. O fogo das colinas tornou-se o símbolo da luz divina; as almas errantes converteram-se em fiéis defuntos; e as oferendas aos ancestrais se transformaram em orações pelos que partiram. A Igreja soube vestir o antigo com novas vestes, preservando o ritmo espiritual das comunidades enquanto lhes oferecia uma nova teologia da morte e da esperança.
Com o passar dos séculos, o Samhain desapareceria como ritual formal, mas suas imagens e símbolos continuariam vivos. As fogueiras, as abóboras (que substituíram os nabos iluminados da tradição celta), as máscaras e as procissões noturnas são vestígios desse passado remoto. Mais do que uma festa folclórica, o Samhain foi uma visão do mundo, uma compreensão ancestral de que a vida e a morte são faces de uma mesma eternidade.
A Igreja e a Estratégia da Cristianização: O Fogo Transformado em Luz
Quando o cristianismo começou a se expandir pelas regiões da Irlanda, Bretanha e Gália entre os séculos V e VIII, encontrou um mosaico de tradições profundamente enraizadas, transmitidas por séculos através da oralidade e dos ritos comunitários. Entre essas tradições, poucas eram tão poderosas e simbólicas quanto o Samhain, o limiar entre a vida e a morte. A Igreja, consciente de sua força cultural e espiritual, não o combateu de imediato. Pelo contrário — absorveu-o, reinterpretou-o e o consagrou, convertendo o fogo pagão em luz cristã.
Essa estratégia, longe de ser um mero expediente político, fazia parte de uma política pastoral consciente. Desde os tempos do papa Gregório Magno (590–604), Roma havia adotado uma postura pragmática em relação à conversão dos povos pagãos. Em uma famosa carta de 601, endereçada ao abade Mellitus, Gregório aconselhava que os missionários não destruíssem os templos pagãos, mas os consagrassem ao Deus cristão, substituindo as antigas oferendas por relíquias e procissões. A tática consistia em converter os símbolos, não eliminá-los, preservando a familiaridade do povo com suas práticas e transformando-as em instrumentos da fé.
Essa política foi aplicada com maestria nas ilhas britânicas. Os monges irlandeses e bretões — herdeiros de uma tradição missionária vigorosa — compreenderam que as antigas festas sazonais podiam ser reinterpretadas dentro do calendário cristão. Assim, enquanto o Samhain celebrava o fim da colheita e o retorno dos mortos, a Igreja ofereceu uma nova leitura espiritual: o fim do ciclo terreno e a memória dos santos e mártires que haviam alcançado a vida eterna.
O processo de cristianização de Samhain culminou na institucionalização do Dia de Todos os Santos (Festum Omnium Sanctorum). A primeira menção dessa celebração remonta ao século IV, em Antioquia, onde os cristãos honravam coletivamente os mártires que não possuíam um dia próprio. Mas a data ainda variava conforme a região. Em Roma, até o século VIII, o Dia de Todos os Santos era celebrado em maio — mais precisamente, no dia 13 de maio, data escolhida pelo papa Bonifácio IV ao consagrar o antigo Panteão romano à Virgem Maria e a todos os mártires, transformando o templo pagão dedicado a todos os deuses em um símbolo da vitória cristã sobre o paganismo.
Contudo, a escolha do mês de maio não coincidia com as antigas tradições rurais da Europa do Norte. Foi apenas sob o pontificado de Gregório III (731–741) que a festa foi transferida para 1º de novembro, coincidindo com o período do Samhain. O papa dedicou uma capela na basílica de São Pedro “em honra de todos os santos e mártires”, e, posteriormente, Gregório IV (827–844) estendeu a celebração a toda a cristandade. A coincidência não era acidental — tratava-se de uma substituição simbólica cuidadosamente planejada. A data do antigo festival pagão foi mantida, mas seu significado foi elevado: o tempo em que os mortos retornavam tornou-se o tempo em que os santos — os “mortos em Cristo” — intercediam pelos vivos.
Essa transformação é um exemplo magistral da sabedoria adaptativa da Igreja medieval. Em vez de combater o fogo de Samhain, a Igreja o converteu em chama sagrada. O fogo das colinas tornou-se o fogo dos altares; as oferendas aos mortos converteram-se em orações pelos fiéis defuntos; as máscaras e disfarces, que protegiam contra os espíritos, foram reinterpretadas como símbolos da luta entre o bem e o mal, tema constante nas pregações sobre o Juízo Final.
Além disso, o cristianismo introduziu uma nova dimensão teológica ausente nas crenças pagãs: a doutrina da Comunhão dos Santos. Enquanto os celtas buscavam manter um vínculo ritual com seus ancestrais, a Igreja ensinava que todos os batizados — vivos, mortos ou glorificados — participavam de uma mesma comunhão espiritual em Cristo. A morte, portanto, deixava de ser uma travessia perigosa e se tornava uma passagem para a eternidade, mediada pela graça divina. O terror dos espíritos errantes foi substituído pela esperança da intercessão dos santos.
A criação do Dia de Finados (2 de novembro), pouco tempo depois, reforçou esse novo enquadramento espiritual. Acredita-se que o costume tenha se originado no mosteiro de Cluny, na França, em 998, por iniciativa do abade Odilon de Cluny. Desejando estabelecer uma data em que os monges e fiéis pudessem rezar pelos mortos do Purgatório, Odilon instituiu uma celebração no dia seguinte à Festa de Todos os Santos. O costume se espalhou rapidamente pela Europa, especialmente após ser adotado pelos beneditinos e, mais tarde, pelos papas. Assim, a antiga noite dos mortos transformou-se em dois dias de luz e intercessão: um para honrar os santos no céu e outro para interceder pelas almas em purificação.
A cristianização do Samhain, contudo, não eliminou por completo os elementos populares. Em muitas regiões, sobretudo na Irlanda e na Escócia, persistiram costumes híbridos, como a prática de acender velas nos cemitérios, o uso de lanternas feitas de nabos e o costume de deixar comida sobre as mesas para as almas que visitavam as casas — tradições que sobreviveram no All Hallows’ Eve, a véspera de Todos os Santos, de onde nasceu o moderno Halloween.
Essa convivência entre o sagrado e o popular é uma das marcas mais fascinantes da religiosidade medieval. A Igreja, ao transformar o Samhain, não apenas converteu um festival pagão: moldou um novo calendário espiritual, em que a morte foi integrada à teologia da redenção. O fogo que antes temia os mortos passou a celebrar a vitória da vida eterna; o medo se converteu em esperança; e o antigo círculo do tempo foi reinterpretado como uma linha rumo à salvação.
Como observa o historiador Ronald Hutton, em The Stations of the Sun (1996), “a cristianização do Samhain foi menos uma supressão e mais uma metamorfose — uma conversão simbólica em que o mesmo sol que se punha sobre o ano celta nascia novamente sob o signo da cruz”. O outono espiritual da Europa pagã deu lugar a uma nova primavera teológica, onde o culto à memória se tornou oração e o fogo ritual foi aceso, agora, diante dos altares.
Da Tradição Céltica ao Calendário Litúrgico: A Consolidação das Festas de Novembro
Quando o cristianismo medieval consolidou a celebração do Dia de Todos os Santos em 1º de novembro e do Dia de Finados em 2 de novembro, não estava apenas reorganizando o calendário — estava redefinindo a percepção da morte e da memória dentro da sociedade europeia. O antigo ciclo agrícola, que girava em torno do Samhain, foi cristianizado em um novo ciclo litúrgico: o tempo da lembrança sagrada, no qual o fim do outono se transformou em um hino à eternidade e à esperança da ressurreição.
A Cluny e o nascimento do Dia de Finados
A criação do Dia de Finados (Commemoratio Omnium Fidelium Defunctorum) foi uma das inovações mais marcantes do monaquismo medieval. A ideia surgiu no Mosteiro de Cluny, na Borgonha, centro espiritual e reformador do cristianismo ocidental entre os séculos X e XI. Sob o abade Odilon de Cluny (c. 962–1049), a comunidade monástica estabeleceu o 2 de novembro como o dia dedicado à memória dos fiéis defuntos.
A motivação era teológica e pastoral. Na espiritualidade monástica cluniacense, o tempo terreno e o eterno estavam intimamente entrelaçados. Acreditava-se que a oração dos vivos podia aliviar o sofrimento das almas no Purgatório, uma doutrina que, embora ainda em formação, ganhava cada vez mais força. O Purgatório, entendido como estado de purificação intermediário entre o inferno e o paraíso, foi uma das contribuições mais originais da teologia medieval.
Segundo o historiador Jacques Le Goff, em La Naissance du Purgatoire (1981), o século XI marcou a cristalização dessa crença. A nova sensibilidade religiosa via na morte não um abismo definitivo, mas um processo de depuração, onde as orações e sacrifícios dos vivos podiam interceder pelas almas em sofrimento. O Dia de Finados, portanto, representava a dimensão prática dessa teologia: uma forma de a Igreja construir uma ponte espiritual entre os dois mundos.
A instituição da festa de Cluny espalhou-se rapidamente. As ordens beneditinas adotaram o costume, seguido logo pelos cistercienses e agostinianos. No século XIII, o papa João XIX reconheceu oficialmente a celebração, e ela foi incorporada ao Missal Romano. A partir de então, novembro tornou-se o mês dos mortos em toda a cristandade — uma época de recolhimento, orações e memória.
A Liturgia Medieval e o Ciclo da Morte e Ressurreição
A liturgia medieval não se limitava a ritos; ela constituía um sistema simbólico total, onde o tempo sagrado se espelhava na natureza. O calendário cristão dialogava com as estações e com a experiência humana do nascer e do morrer. Assim, o período que começa em 1º de novembro — entre o fim das colheitas e o início do inverno — tornou-se o tempo da comunhão espiritual com os mortos e com os santos.
As celebrações eram intensas. Nas igrejas e mosteiros, os sinos tocavam longamente, as velas eram acesas em profusão e as missas pelos mortos se multiplicavam. Nos claustros, os monges liam as listas de nomes — os libri memoriales — que continham os fiéis a serem lembrados naquele ano. Era um exercício de memória coletiva, no qual cada nome pronunciado se tornava uma prece, e cada luz acesa simbolizava a alma conduzida à presença divina.
Mas a liturgia não era apenas contemplação. Ela tinha também uma função social e política. Ao inserir o culto aos mortos na rotina anual, a Igreja forneceu uma estrutura espiritual que ordenava o medo e a esperança das comunidades medievais. A morte, tão onipresente nas pestes, guerras e fomes, tornava-se parte de uma narrativa sagrada. Rezar pelos defuntos não era mais superstição, mas dever cristão. Assim, o gesto de acender uma vela ou visitar um túmulo não apenas aliviava o sofrimento pessoal, mas reafirmava o vínculo da cristandade como corpo único — a ecclesia universalis.
A Igreja também soube integrar as práticas populares. Em muitas aldeias, continuavam-se a realizar procissões noturnas com tochas e cânticos pelos cemitérios, uma tradição herdada dos antigos ritos agrários. Contudo, sob a influência monástica, esses gestos ganharam novos significados: as tochas que guiavam os espíritos tornaram-se símbolos da luz de Cristo, que ilumina as trevas da morte.
Com o tempo, a arte e a arquitetura cristãs começaram a expressar visualmente essa transformação simbólica. Nas catedrais góticas, como Chartres, Notre-Dame de Paris e Reims, o ciclo dos santos e das almas foi representado em vitrais e relevos. A luz colorida que penetrava pelos vitrais era percebida como metáfora da presença divina que atravessa a matéria, transformando o mundo físico em uma antecipação do Paraíso. Assim, o fogo que iluminava o Samhain encontrou sua continuidade na luz mística das igrejas medievais.
Do Fogo Ritual à Luz Sacramental
A simbologia do fogo, elemento central nas fogueiras de Samhain, sobreviveu na liturgia medieval sob uma nova roupagem. As velas, as lâmpadas do altar e o círio pascal tornaram-se emblemas da luz que vence a morte. Essa transfiguração do elemento natural em símbolo sacramental é um exemplo do modo como a Igreja medieval reinterpretava a linguagem cósmica do paganismo sem negar sua força poética.
No início da Idade Média, acender uma vela por um morto era um gesto carregado de significado. Representava o desejo de que a alma, ao atravessar as sombras do além, fosse guiada pela luz de Cristo. Essa prática, ainda hoje preservada, é herdeira direta do antigo costume celta de acender tochas e fogueiras para orientar os espíritos.
Nas aldeias cristãs, as noites entre o final de outubro e o início de novembro eram marcadas por uma mistura de devoção e temor. As pessoas deixavam pães e alimentos nas portas, não mais para apaziguar espíritos famintos, mas como atos de caridade em favor dos pobres — vistos como representantes simbólicos das almas em sofrimento. Essa transposição de sentido é uma das mais belas expressões do sincretismo medieval, em que o gesto humano era ao mesmo tempo memória ancestral e prece cristã.
A Igreja, portanto, não destruiu o Samhain; ela o batizou. Conservou sua atmosfera de liminaridade — o momento em que o véu entre os mundos se torna tênue —, mas revestiu-o de uma nova teologia. O medo da escuridão deu lugar à confiança na ressurreição; o culto aos mortos foi elevado à comunhão dos santos. E, dessa fusão, nasceu um dos períodos mais ricos do calendário cristão: o tempo litúrgico da memória e da eternidade.
Entre a Superstição e a Devoção: As Permanências Pagãs na Idade Média
A cristianização da Europa não foi um processo de ruptura, mas de transformação cultural profunda, em que o antigo e o novo coexistiram por séculos. Na Idade Média, as fronteiras entre religião e superstição, fé e magia, não eram nítidas. Sob a cruz erguida nos altares, sobreviviam as sombras dos antigos ritos, e nas orações dos camponeses ecoavam fórmulas tão antigas quanto os próprios deuses esquecidos. A festa cristã de Todos os Santos e o Dia de Finados, embora integrados ao calendário litúrgico, mantiveram vestígios da velha alma do Samhain.
Em vilas e aldeias, sobretudo nas regiões rurais da França, Irlanda, Inglaterra e Alemanha, os costumes ancestrais se entrelaçavam com a devoção cristã. As pessoas acendiam velas nas janelas e nos cemitérios, acreditando que suas luzes guiavam as almas dos parentes falecidos de volta à morada celeste. Essa prática, vista pelos monges com desconfiança, foi reinterpretada pela Igreja como símbolo da oração pelas almas do Purgatório.
Os camponeses, porém, nem sempre compreendiam a sutileza teológica. Em muitos lugares, ainda se acreditava que, durante as noites entre 31 de outubro e 2 de novembro, os mortos retornavam temporariamente para visitar suas antigas casas. As famílias deixavam pão, leite e até cadeiras vazias junto à lareira — não mais como oferendas pagãs, mas como gestos de hospitalidade cristã, na esperança de aliviar o sofrimento das almas. Jean-Claude Schmitt, em Les Revenants: Les Vivants et les Morts dans la Société Médiévale (1994), descreve esse costume como parte de uma “cultura da presença dos mortos”, em que a memória e o medo coexistiam na mesma devoção popular.
A Morte que Caminha: A Persistência dos Espíritos
A figura do “morto que retorna” — o revenant — era uma das mais temidas e respeitadas do imaginário medieval. Cronistas e hagiografias registram inúmeros relatos de aparições de defuntos que voltavam para corrigir injustiças, reclamar missas ou castigar pecadores. Esses fantasmas não eram vistos como entidades demoníacas, mas como almas do Purgatório que buscavam a intercessão dos vivos.
O célebre Tractatus de Purgatorio Sancti Patricii (século XII), atribuído a Henrique de Saltrey, apresenta um exemplo emblemático. No relato, um cavaleiro irlandês chamado Owein desce ao Purgatório por meio de uma gruta em Lough Derg — o “Purgatório de São Patrício” — e lá encontra almas penitentes, queimadas e atormentadas, mas ainda em busca da redenção. Essa narrativa combina elementos cristãos e célticos: a descida ao submundo ecoa as antigas jornadas do Samhain, enquanto o fogo purificador reflete a doutrina cristã da purificação após a morte.
Assim, o medo dos mortos não foi extinto, apenas reconfigurado. As almas que vagavam entre os mundos deixaram de ser ameaças e se tornaram intercessoras, lembrando aos vivos sua própria fragilidade e a necessidade de penitência. O que antes era superstição tornou-se pedagogia espiritual: a presença dos mortos servia para reafirmar a fé no além e o poder das orações da Igreja.
Máscaras, Desfiles e a Noite das Almas
Entre os séculos XII e XIV, em várias partes da Europa, desenvolveram-se as chamadas “procissões das almas” (charivari des morts ou rondas das almas), que ocorriam durante as noites de outono. Homens e crianças mascarados percorriam as ruas batendo panelas e pedindo oferendas, em troca de orações pelos defuntos. Embora o clero condenasse esses costumes como “resquícios de paganismo”, eles persistiram, pois expressavam uma função social e espiritual autêntica: manter o vínculo entre vivos e mortos.
A máscara, herdeira direta das disfarces do Samhain, também continuou a desempenhar papel simbólico. No contexto medieval, ela assumia múltiplos significados: representava a alma penitente, o espírito errante, ou o demônio que deveria ser exorcizado. Carlo Ginzburg, em Ecstasies: Deciphering the Witches’ Sabbath (1989), interpreta essas tradições como ecos de antigos cultos xamânicos europeus, nos quais o disfarce permitia transitar entre o mundo dos vivos e o dos mortos.
Essas procissões noturnas — muitas vezes acompanhadas por canções e pedidos de comida — evoluíram, ao longo dos séculos, para práticas populares como o souling inglês, tradição em que as pessoas visitavam casas em troca de “soul cakes” (bolos das almas), prometendo rezar pelos mortos da família anfitriã. Essa prática é o ancestral direto do moderno trick or treat (“doce ou travessura”). O gesto de dar e receber alimento nas noites de outono, que outrora apaziguava espíritos, transformou-se em uma liturgia popular da caridade.
A Tensão entre a Igreja e o Povo
Embora a Igreja tenha absorvido muitos desses costumes, sempre existiu uma tensão entre a ortodoxia e a religiosidade popular. Sínodos e concílios medievais frequentemente condenavam as “superstições rurais” — o uso de amuletos, orações mágicas e ritos em cemitérios. No entanto, como observa Peter Brown em The Cult of the Saints (1981), a força da religião medieval residia justamente nessa capacidade de conciliar o dogma com o imaginário popular.
Os monges e pregadores compreenderam que o povo precisava de símbolos visíveis. As fogueiras e os sinos não eram apenas práticas herdadas do paganismo: eram meios de lidar com o medo do desconhecido. O cristianismo medieval soube, portanto, “batizar o medo” — transformando o horror dos espíritos em esperança escatológica.
O resultado foi um cristianismo profundamente enraizado no cotidiano, em que a devoção convivia com o feitiço, e a oração se misturava à lenda. O camponês medieval podia rezar o Pater Noster diante da imagem de São Miguel e, em seguida, pendurar uma ferradura na porta “para afastar maus espíritos”. A Igreja, por sua vez, aceitava essa ambiguidade como parte da lenta conversão do imaginário coletivo.
O Fim da Noite e o Nascimento do Mito
Ao final da Idade Média, os elementos simbólicos do Samhain haviam se fundido completamente ao tecido da religiosidade europeia. O fogo tornou-se luz; os mortos, santos; e a noite, tempo de oração. No entanto, a memória do antigo festival não desapareceu — apenas se transformou.
Quando, séculos depois, a Reforma e a modernidade começaram a questionar os ritos católicos, as antigas festas de outono ressurgiram sob novas formas, especialmente nas regiões protestantes das Ilhas Britânicas. O Halloween, celebrado na véspera de Todos os Santos, preserva ainda hoje essa herança híbrida: uma noite em que o medo e o riso, o sagrado e o profano, continuam dançando à luz das velas.
Como resume Ronald Hutton em The Pagan Religions of the Ancient British Isles (1991), “a história do Samhain é a história de como a Europa aprendeu a conviver com seus mortos — não negando-os, mas iluminando-os”. O cristianismo medieval, longe de destruir o passado pagão, o transfigurou em memória e esperança. O resultado é um dos legados mais fascinantes da civilização europeia: a crença de que a morte não é o fim, mas o limiar de um eterno reencontro.
Conclusão
A história do Samhain e sua transformação no Dia de Todos os Santos e Dia de Finados é, acima de tudo, a história da alma europeia. Nela, vemos o diálogo milenar entre o medo e a fé, entre o fogo pagão e a luz cristã, entre a necessidade humana de compreender a morte e o desejo divino de transcender o fim.
Nenhuma outra metamorfose cultural ilustra tão claramente o modo como a Idade Média — longe de ser uma era de trevas — foi um tempo de síntese espiritual. Os monges, missionários e teólogos não apenas destruíram antigos costumes; eles os reinterpretaram, moldando o que já existia à imagem de uma nova teologia. A terra sagrada dos druidas foi semeada com a fé de Roma, e o festival dos mortos renasceu como uma celebração da vida eterna.
O Samhain, outrora o festival da colheita e da escuridão, tornou-se o prelúdio litúrgico do Advento, tempo em que a cristandade contemplava a morte não como derrota, mas como passagem. O medo dos espíritos transformou-se em intercessão dos santos, e as fogueiras que afastavam os mortos converteram-se em velas que iluminam os altares. Como afirmou Jacques Le Goff, “a Idade Média não destruiu o tempo antigo — ela o batizou”.
A permanência dos símbolos antigos — as velas, as oferendas, as máscaras e o próprio medo da noite — não representa um fracasso da cristianização, mas sim o testemunho da profundidade da alma humana, que necessita de rituais para nomear o inominável. A Igreja, em sua sabedoria, compreendeu que a fé não nasce da negação do medo, mas de sua transfiguração.
Assim, a luz que brilha nas janelas durante o Dia de Finados é herdeira direta das fogueiras de Samhain; e as orações murmuradas nos cemitérios são ecos dos cânticos antigos, agora purificados pela esperança da ressurreição.
A fusão entre o antigo festival celta e o calendário cristão produziu um dos períodos mais poéticos e simbólicos do ano litúrgico. Nele, o homem medieval encontrava-se com o mistério do além, com a lembrança dos mortos e com a certeza de que o amor — terreno ou divino — sobrevive à própria morte.
A modernidade, ao redescobrir o Halloween como um espetáculo lúdico, talvez tenha esquecido a densidade espiritual que lhe deu origem. Mas sob cada máscara e sob cada vela acesa, ainda vive a mesma intuição ancestral: de que entre o mundo dos vivos e o dos mortos existe apenas um véu tênue, sustentado pela memória e pela fé.
O Samhain e o Dia de Todos os Santos são, em última análise, duas faces do mesmo espelho. De um lado, o homem teme o escuro; do outro, acende a luz. E é nesse gesto — simples e eterno — que se revela o verdadeiro milagre da história: a capacidade humana de transformar o medo em esperança, o fogo em oração e a morte em eternidade.
Fontes
HUTTON, Ronald. The Stations of the Sun: A History of the Ritual Year in Britain. Oxford University Press, 1996.
LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. Editora Vozes, 1981.
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WOOD, Ian. The Missionary Life: Saints and the Evangelisation of Europe, 400–1050. Longman, 2001.
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